por Dartagnan da Silva Zanela (*)

No comecinho dos anos 90 morei na cidade de Clevelândia. Na época eu estudava no Colégio Agrícola Estadual Assis Brasil.

Eita! Verdes anos que não voltam mais. Muitas são as lembranças que tenho dessa época, muitas. Uma delas era a biblioteca.

Ela, como muitas bibliotecas escolares daqueles idos, dispunha de poucos títulos, mas, curiosamente, tinha uma urna de vidro com um esqueleto humano – um esqueleto humano de verdade – que muitas vezes era motivo de chacota de nossa parte e, vez por outra, despertava em nós aqueles confusos sentimentos de apreensão e medo.

Mas essa escrevinhada não é sobre os ossos velhos esquecidos numa biblioteca pouco frequentada. É sobre uma pilha de revistas de surf que faziam parte do acervo da referida. Revistas essas que roubavam a atenção de todos nós que, no intervalo, ou durante a noite, lá íamos, não tanto para ler as matérias sobre o esporte das ondas, mas sim, para vermos as fotografias dos surfistas desafiando a força das águas.

E cá entre nós: todas as imagens eram sublimes. Creio que todos nós, em algum momento, imaginamo-nos entrando naqueles tubos d’água gigantes realizando manobras radicais e tudo o mais.

Literalmente víamos através daquelas imagens um mundo que, bem provavelmente, nenhum de nós, pobres rapazes latino-americanos, sem nenhum dinheirinho no bolso, vindos do interior, bem do interior do Paraná, jamais iríamos adentrar, mas, mesmo assim, aquelas imagens nos fascinavam como, imagino eu, seriam capazes de fascinar qualquer jovem de qualquer época e lugar.

Em se falando nisso, recentemente, assisti a uma série documental da Netflix intitulada “Human Playground” onde são apresentadas várias modalidades esportivas que são praticadas pelo mundo afora.

Junto com as imagens dos desportos, é-nos dissertado sobre a importância que estes têm na vida das pessoas, para que cada uma possa ultrapassar os seus limites, superar os seus medos e almejar a perfeição.

A série não é apenas instrutiva; ela é tocante. Cada caso apresentado, ao seu modo, é inspirador, uma verdadeira lição de vida e, de todos os que vi até o momento, um dos que mais me chamou a atenção foi o da surfista brasileira Maya Gabeira.

Ela estava em Portugal para, pela segunda vez, enfrentar as portentosas ondas de Nazaré. Ondas gigantescas, entre 18 e 24 metros de altura.

Na primeira vez que esteve lá, ela conseguiu pegar uma onda magnífica, mas, infelizmente, a onda a pegou melhor e quase ceifou a sua vida e isso a deixou traumatizada, levando-a, inclusive, a cogitar seriamente a possibilidade de abandonar o esporte.

Pois é. Mas não foi esse o caso. Lá estava ela para, mais uma vez, enfrentar o braço forte de Netuno e, com ele, os seus medos que, desde então, se agigantaram e passaram a assombrar o seu coração dia e noite.

Ao vê-la em alto mar correndo atrás da onda perfeita, entre as inúmeras ondas que se arrebentavam em frondosos paredões de pedra, lembrei das fotos das revistas de surf da biblioteca do Colégio Agrícola que foi minha morada no comecinho dos anos 90.

Não apenas isso. Vendo-a cavalgando aquele monstro d’água de 23 metros de altura, imaginei-a sendo afrontada por seus medos, na forma de inclementes demônios marinhos, sussurrando cinicamente em seus ouvidos: “Maya! Essa onda é grande demais! Você não vai conseguir! Desista antes que seja tarde!”

Mas também imaginei-a, de forma serena, com os olhos firmes voltados para o infinito, dizendo, num crescente violento: “eu não tenho medo da onda; eu não tremo diante da queda. Eu sou a onda; eu sou a sua queda”.

Não sou surfista e, creio, que você também não o seja, mas todos nós temos nossos medos que limitam nosso potencial, que cerceiam tudo aquilo que nós podemos e devemos ser e, de modo similar a ela, e a muitos outros que, com temor e tremor, em meio a ranger de dentes e gemidos, seguem em frente diante dos desafios apresentados pela vida porque, como nos ensina Fernando Pessoa, quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor. Tem que passar além da dor e do temor.

E essa jornada é solitária, como tudo o mais que realmente vale a pena, e deve ser encarada por nós, por cada um de nós, de peito aberto com o coração na mão, pois, como nos ensina o filósofo Louis Lavelle, se os bens do espírito são os únicos realmente verdadeiros, ignorá-los e viver uma vida sem almejá-los, é condenar-se a ser o mais miserável dos miseráveis. No mínimo.

Por isso, é imprescindível que não permitamos que toda essa conversa-mole hipersensível que, de muitas formas, impera no cenário contemporâneo, invada o nosso coração.

Temos que nos defender disso com todas as forças do nosso ser porque, os limites, impostos pelas circunstâncias não existem para que nos sintamos fracos e diminuídos, mas sim, para tornarmo-nos cônscios de onde está a linha que nós devemos intrepidamente ultrapassar, encarando de frente os nossos medos e abraçando fortemente todas as nossas esperanças para, ao final, encontrarmo-nos com a verdade sobre nós mesmos que, até então, era desconhecida e ignorada por nós e que, apenas pode ser conhecida desse modo e de nenhum mais.

(*) professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de “A Bacia de Pilatos”, entre outros ebooks.

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