Carteado

Conta-se à boca pequena pelas quebradas da história que, certa feita, o gaudério general Flores da Cunha estava em Santana do Livramento jogando um carteado de pôquer, que era algo que ele fazia muito gosto, diga-se de passagem.

Lá pelas tantas, apareceu um paulista, cujo nome se perdeu pelas vielas da história, paulista esse que resolveu sentar-se na mesa onde o referido político gaúcho estava se atracando no baralho.

O homem sentou-se e colocou-se a jogar. E o danado era bom nisso. Segundo consta, estava pelando toda a indiada. Porém – porque, “sacumé”, sempre há um porém – do nada o general resolveu apostar todas as suas fichas. Bem, o paulista sem nome não estava com um Royal Straight Flush, mas suas cartas não eram de se jogar fora e, por isso, bancou a aposta.

Aquele climão baixou sobre todos os presentes. O paulista mostrou suas cartas. Era um Full House. Flores da Cunha, com um sorriso malandro no rosto, mostrou as suas e, para a surpresa de todos, suas cartas não ligavam lé com cré.

Vendo isso, o ilustre jogador anônimo, sorriu, faceiro feito lambari na sanga, e foi pra cima das fichas. Nisso, o gaúcho parou a mão do rapaz. “O que é isso, general?! Cachorrão!” disse o forasteiro. “O que é isso pergunto eu. Le ganhei a mão”. “Mas como general? O senhor está bêbado? Só pode.”

Flores da Cunha dá uma baita tragada em seu charuto, coloca seu revólver sobre a mesa, e passa a explicar para o rapaz a situação: “Você não é daqui, não é mesmo rapaz?” “Não senhor.” “Então, deixe-me te explicar: aqui no Rio Grande do Sul, quando temos em nossas mãos cinco cartas diferentes uma da outra, chamamos essa jogada de “Farroupilha” e, aqui, esse é um jogo de grande valor. Vale mais que um Royal Straight Flush”.

Após dizer isso, o velho general recolheu as fichas da mesa, enquanto o paulista engoliu à seco toda aquela conversa pelo fiote.

O jogo segue e, mais tarde, Flores da Cunha aposta tudo. O paulista, mais uma vez, cobre a aposta. Dessa vez o general tinha uma Trinca de Ases e, o paulista, faceiro da vida, apresenta as suas cartas e diz: “ganhei! Fiz um Farroupilha!”

Quando ele estendeu suas mãos para pegar as fichas, Flores da Cunha, mais uma vez colocou seu trinta e oito sobre a mesa e disse: “Espere aí seu moço”. “Esperar o que General?” “O senhor não ganhou”. “Como assim? Eu fiz um ‘Farroupilha’. Ganhei”. “Não meu amigo. Nada disso. É que ‘Farroupilha’ é um jogo tão importante, tão importante, que só é permitido que ocorra uma única vez durante a noite. Logo, o senhor perdeu mais uma vez”.

Bah! Ao relembrar desse causo, vendo as imposturas parlamentares que estão sendo encenadas no picadeiro senatorial dessa triste república, tenho a impressão de que estou diante de um carteado similar ao que fora relatado. Um jogo de cartas marcadas e com regras dúbias.

Todos sabemos que as Comissões Parlamentares de Inquérito existem não para resolver problemas, mas sim, para gerá-los. Isso não é de hoje. Também, todos nós sabemos que esse instrumento, que são as referidas comissões, servem muito mais para que algumas figuras políticas – algumas inócuas, umas pérfidas e outras esquecidas – tenham a oportunidade de “brilhar” diante dos holofotes e, assim, quem sabe, impressionar a sua majestade o eleitor, do que para realizar uma investigação que não termine em pizza. Nós todos sabemos disso. E isso, como havíamos dito, não é de hoje.

Porém, a atual CPI que está sendo encenada, com o perdão da palavra, nem para isso serve, tendo em vista a forma truculenta que os trabalhos estão sendo conduzidos e, ao que tudo indica, continuarão nesse ritmo.

Ora, depois da declaração que foi feita pelo senhor que preside a referida Comissão, o que temos que fazer é apenas lamentar. Isso mesmo, meu caro Watson! Quando um senador, que está a frente de um inquérito parlamentar diz, em alto e bom tom, que os seus pares devem deixar a depoente parlar o quanto quiser porque, pouco importa o que ela irá dizer, tendo em vista que isso não vai mudar a opinião deles de jeito maneira, isso significa uma coisa só: eles não estão interessados em investigar patavina alguma. O que eles querem mesmo é brilhar em um espetáculo bufo e fazer valer os seus interesses que, ao que parece, não são lá muito republicanos.

Aliás, vale lembrar que a referida comissão é presidida por um senhor que é investigado por desvios de verbas da saúde no seu Estado e, tem como relator, o senhor Renan Calheiros, que é simplesmente quem ele é.

E, tendo isso em conta, não poderíamos esperar nada que difira do que nos foi apresentado até o momento. Quer dizer, imagino que existam aqueles que esperavam – e esperam – algo diferente, pois, como todos sabemos, a esperança é a última que morre.

Seja como for, fico cá com meus alfarrábios, matutando: já pararam pra pensar se esses senadores, nervosinhos e “fevosos”, que integram essa CPI, estivessem à frente do enfrentamento da atual crise sanitária? Já pararam pra pensar se a velha esquerda e a nova esquerda estivessem no comando dos esforços para salvar vidas em nosso triste país? Imagino que seria um espetáculo de eficiência e probidade como foram as obras – concluídas e inconclusas – da Copa do Mundo de 2014. Lembram-se disso? Eu não esqueci.

É. Lembro-me, como se fosse ontem que, na época, a alma mais honesta do Brasil havia dito que não se fazia copa do mundo com hospitais. Lembro-me, também, que o “fenômeno” havia dito algo similar e, ao que parece, isso não escandalizou nenhuma das almas impolutas que não tiram a palavra fascista e genocida da boca e, talvez, não escandalize, porque essas figuras vejam e o cenário contemporâneo em que vivemos com pesos e medidas similares aos que eram utilizados por Flores da Cunha em seus carteados.

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela

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