Tudo o que existe tem que ter um nome para ser identificado. Tudo. Porém, por mil e uma malandragens, muitas das vezes, usamos palavras escorregadias para encobrir a realidade suja que está diante de nossas vistas, principalmente se somos os autores da sujeira, não é mesmo?
Uns, é claro, fazem isso para se auto enganar; outros, por sua vez, para enganar todos os demais.
O uso de tais artifícios pode, literalmente, ser comparado com conjurações encantatórias, pois, como todos nós sabemos, sem palavras, os feitiços tornam-se irrealizáveis. Detalhe: não há bruxeiro mudo. Aliás, como nos ensina Theodor Adorno, desde a aurora dos tempos, todos aqueles que eram hábeis no manuseio das palavras eram, de certa forma, feiticeiros.
Um exemplo não muito distante desse uso encantatório das palavras era o famoso Clube dos Caçadores, também conhecido como centro dos caçadores, que de clube não tinha nada e, de caçadores, menos ainda.
Ele era localizado em Porto Alegre, na rua Andrade Neves, paralela à rua da Praia. Nele se reuniam intelectuais e políticos gaúchos, a nata do Rio Grande do Sul, até meados do século XX.
Bem, se o Clube dos Caçadores não era um clube, nem reunia audazes praticantes do referido esporte, o que era então? Um cabaré com um cassino, que trazia para o deleite dos frequentadores da casa, além de espetáculos musicais, beldades vindas do Uruguai, Paraguai e Argentina, que sempre se apresentavam como “francesas”, que desfilavam por entre as mesas com suas curvas sensuais e olhadelas tentadoras.
Todos sabiam o que era o dito clube, todos, inclusive as esposas dos frequentadores, mas todos fingiam não saber de nada. As senhoras ignoravam que seus esposos, que não eram caçadores, frequentavam religiosamente um lupanar, e os esposos fingiam que estavam apenas se reunindo com seus pares numa respeitosa casa para cavalheiros, não numa casa de tolerância.
Todos sabiam claramente o que estava diante de suas vistas, mas todos preferiam tapar o sol da realidade com uma peneira de palavras malandramente escolhidas.
Outro exemplo que me ocorre é uma entrevista que foi concedida por um deputado ao programa Roda Viva, da TV Cultura, no comecinho do terceiro milênio. Estávamos no início do escândalo do mensalão e, se minha memória não está me traindo, o deputado em questão era o senhor José Genoino.
Nessa roda de entrevista, um jornalista, cujo nome me foge a lembrança, havia perguntado ao petista sobre o esquema de “caixa dois” que eles supostamente haviam montado e o deputado, malandramente, disse que não havia problema algum de “caixa dois” na contabilidade criativa que teria sido realizada pelo seu partido. O que eles tinham era apenas uns probleminhas com “alguns recursos de campanha não contabilizados”.
Dito isso, não se tocou mais no assunto durante toda a entrevista. Porém, o que seria mesmo “alguns recursos de campanha não contabilizados”? Pois é, mais uma vez, temos diante de nossas ventas, o poder encantatório das palavras quando são maliciosamente utilizadas.
Atualmente temos a nossa CPI da COVID que, sejamos francos, os senadores bem que tentam fazer conjurações mil para tentar emplacar uma narrativa para desviar a atenção, a nossa atenção, do óbvio ululante: de que as velhas raposas estão querendo limpar suas cracas em sua própria sujeira e dizer que tudo isso é em nome da tal ciência e que o culpado de tudo é o presidente e ponto final.
Lembremos, e não nos esqueçamos, do poder encantatório das palavras porque, para muitos, basta evocar o vocábulo ciência que tudo passa a ser justificado num passe de mágica; desde que, é claro, reforce direitinho as nossas raivosas convicções.
Sobre esse ponto, o antropólogo Claude Lévi-Strauss, em seu ensaio “O feiticeiro e sua magia”, explica-nos como funciona, em termos antropológicos, a eficácia de um encantamento. Ele nos ensina que uma conjuração para ser eficaz precisa de três alicerces: primeiro, que o conjurador esteja persuadido de que ele tem algum poder; segundo, que as vítimas da conjuração credulamente acreditem que o encantador tenha o poder que ele afirma possuir; e, terceiro, que tenhamos um clima cultural e social que acabe por reforçar, de alguma forma, esse quadro de crendices e ilusões.
Se seguirmos por essa vereda, iremos ver de forma cristalina que a grande mídia, com sua afetação de superioridade, e com seu suposto padrão de qualidade, teria um poder tremendo sobre muitas mentes, similar ao poder que um feiticeiro tem sobre suas vítimas.
Tão grande é seu poder sobre muitos que, não são poucos aqueles que acreditam que são detentores de “verdades cientificamente comprovadas” somente porque acompanham, religiosamente, os noticiários televisivos e, é claro, sem nunca ter deitados as vistas num único estudo científico para confirmar, ou refutar, o que está sendo dito pela dita cuja.
É, meu amigo, isso é bruxaria e da brava.
Mais perspicaz e ácido que Lévi-Strauss foi Machado de Assis em “A Cartomante” e “O Alienista”, que nos apresenta, de uma forma muitíssimo mais divertida e instigante a mesmíssima problemática, porém, doutra forma e com outras imagens e palavras.
Enfim, seja um xamã, ou uma cartomante, ou um alienista, ou a grande mídia ou um punhado de senadores tremendamente maliciosos, as palavras continuam sendo instrumentos largamente utilizados para manipular a nossa percepção dos fatos.
E o pior de tudo é que seria apenas com palavras, devidamente pesadas e medidas, que podemos quebrar esse feitiço político-midiático a que fomos submetidos. E só faremos isso se assim desejarmos e, é claro, se não estivermos agrilhoados as três colunas apontadas por Lévi-Strauss.
Enfim, que Deus nos dê o discernimento necessário para tal empreitada, porque ela é tão urgente quanto necessária.
Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela
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