Rebeldia. Aí está um trem que foi alçado ao patamar de [suposta] virtude cívica número um. Quantas e quantas vezes ouvimos vozes, que se ufanam de sua hiperbólica criticidade, afirmar de forma enfática que a indignação é algo que deve ser estimulado e devidamente cultivado desde a tenra idade porque, segundo as mesmas vozes, não poderíamos falar de cidadania se não cevássemos em nosso coração essa besta-fera que é a tal da indignação.

Muito bem, muito bem, muito bem. Agora vejamos uma coisa: qual a diferença excelsa que há entre a tal da rebeldia crítica e um ataque de birra de uma criança mimada? Qual seria a diferença que existe entre uma crise manhosa e uma manifestação de indignação histrionicamente encenada? Apenas a idade dos sujeitos envolvidos e a direção que cada uma delas está voltada.

Trocando por moela, ou por qualquer outro miúdo de sua predileção, não é preciso ensinar alguém a se rebelar, ou a ficar indignado, tendo em vista que naturalmente nós sabemos fazer isso muito bem desde tenra idade.

Parênteses: ao afirmar isso, não estamos dizendo que toda e qualquer manifestação de insatisfação seja algo reprovável. Não. Qualquer pessoa minimamente razoável sabe muito bem que há momentos em nossa vida em que chegamos a um limite e, feliz ou infelizmente, extravasamos. Da mesma forma, toda pessoa com um pingo de bom senso, sabe muito bem que tais momentos não são e não devem ser considerados como a finalidade primeira da vida em comunidade. Fecha parênteses.

Sigamos em frente. Com toda essa idolatria que há em torno da rebeldia, seja ela de cunho revolucionário ou não, que vemos presente no coração de muitos, nós acabamos por ter como consequência a dilapidação de uma das virtudes fundamentais para o aprimoramento das potencialidades intelectuais e morais de um indivíduo, que é a virtude da obediência.

Sim, isso mesmo, o cultivo consciente da virtude da obediência é indispensável para o desenvolvimento moral e intelectual de um indivíduo. Todos nós, admitamos ou não, seguimos em nossa vida, cônscios ou não disso, prestando obediência a algo ou alguém.

Toda vez que entregamo-nos ao desfrute da indignação, ou algo similar, estamos cegamente obedecendo aos nossos impulsos desordenados, aos nossos caprichos insatisfeitos, aos nossos desejos degradantes, às opiniões superficiais e soberbamente mal formuladas que assimilamos crendo que são nossas e, todos esses troços que nos habitam, muitas vezes acabam sendo muito bem instrumentalizados por grupos, partidos e figurões que sabem muito bem como manipulá-los para atender às demandas dos seus objetivos.

Quando agimos assim, sem nos darmos conta, ficamos presos em vãs tentativas de reduzir a realidade para que ela possa caber na pequenez do desassossego de nossa alma desordenada, intoxicada de má vontade e facilmente manipulada por aqueles que são pura má intenção.

Agora, quando conscientemente procuramos agir a partir daquilo que a realidade nos impõe, obedecendo os limites que se apresentam ao nosso entendimento, nós vamos, gradativamente, ampliando o nosso poder de ação diante a mesma, frente aos outros e, principalmente, sobre nós mesmos.

Por exemplo: quando estamos diante de uma série de equações matemáticas, ou de um quebra-cabeças, ou de um romance de Milan Kundera, estes estão nos convidando a sermos obedientes às suas instruções e a nos conformarmos de maneira dócil às formas e aos conteúdos que estão sendo apresentados a nós, para que possamos incorporá-los em nossa personalidade e, ao fazermos isso, ao sermos obedientes a essas realidades, podermos, ao final, acabar indo muito além do que até então estava nos limitando. Dessa forma, nós crescemos em espírito e verdade e, por essa razão, que Platão nos ensina que verdade conhecida deve ser uma verdade obedecida. Agir de forma diferente é tolice, pra não dizer outra coisa.

Agora, se estivermos diante das mesmas realidades e preferimos crer que, antes de qualquer coisa, nós deveríamos olhar tudo isso de forma crítica e questionar tudo a partir de nossa [tola e superficial] opinião crítica [deformada sobre tudo], ao final, com toda certeza, estaremos nos sentido soberbamente iluminados e capazes de julgar [criticamente] tudo, mesmo que não tenhamos aprendido, minimamente, a resolver um problema matemático, a montar um quebra-cabeças e a solver as palavras de um romance de Milan Kundera, ou de qualquer outro escritor que tenha uma envergadura similar.

Agindo desse modo criticamente tolo, sem nos darmos conta, nós acabamos sempre repetindo as mesmas coisas, os mesmos cacoetes mentais e encenando os mesmos chiliques de indignação tendo, obviamente, a sensação de que estamos tendo a revelação de algo que possua algum valor singular, ao mesmo tempo que vamos ficando cada vez mais agrilhoados no fundo da alcova da nossa mísera existência com nossa mente e coração mutilados.

Por essas e outras que essa mania de ficar se autoafirmando como sendo um figurão “criticamente crítico” é apenas um fetiche tremendamente perigoso que venda nossas vistas para incontáveis problemas que, de forma silente, vão corrompendo nossa capacidade de compreensão, ao invés de realmente tornar efetiva essa tal de educação.

Enfim, de tanto virarmos as costas para obediência às verdades conhecidas que hoje vemos inúmeros indivíduos obedecendo caninamente a qualquer coisa que traga alguma sensação, momentânea e fugaz, de contentamento para sua alma desordenada, para sua inteligência mutilada que foi, ao longo do tempo, sendo sistematicamente desmantelada e desarmada.

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela

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