por Dartagnan da Silva Zanela (*)

Não faz muito, estava lendo o livro “Israel em Abril”, de Érico Veríssimo, onde o mesmo relata as peripécias vividas por ele no período que esteve no Estado Hebreu nos anos sessenta. Uma obra similar ao livro “Gato preto em campo de neve”, do mesmo autor.

Bem, lembro da referida obra porque, logo nas primeiras páginas, Érico Veríssimo nos chama a atenção para a forma como a nossa memória, toda melindrosa, trabalha.

Ele nos diz que, quando menino, havia encontrado uma edição da revista “Leitura para todos” e nela havia uma fotografia do palácio de Vosges, que lhe encantou. Quarenta anos depois ele visitou Paris e, a primeira coisa que ele fez, foi conhecer a paisagem que, quando menino, havia visto em uma fotografia estampada nas páginas da dita-cuja da revista.

No entanto, quando ele voltou para o Brasil, para o seu espanto, a imagem que lhe vinha à mente, quando lembrava do referido palácio, não era a da experiência que ele teve ao visitar a cidade luz, mas sim, a imagem da fotografia que ele havia visto em sua infância numa página impressa. Pois é, vejam só como a nossa memória é cheia de manhas.

Ao ler isso, lembrei-me das considerações feitas por Marshall Mcluhan, em seu livro “Os meios de Comunicação como extensões do homem”, onde o autor canadense nos chama a atenção para as transformações que foram causadas pelas fotografias em nosso campo de percepção da realidade e, consequentemente, em nossa maneira de viver a vida e de rememorá-la.

Mcluhan nos chama a atenção para a forma como as pessoas viam as paisagens do mundo, antes e depois do surgimento das máquinas fotográficas.

Antes do aparecimento delas, quando íamos viajar para um lugar pela primeira vez, tínhamos em nossa memória apenas representações esquemáticas que nos eram transmitidas por pinturas, gravuras e descrições, orais ou escritas, feitas por pessoas que lá estiveram antes de nós.

Bem, com as máquinas fotográficas, tudo mudou. Essa experiência de espanto, de desnudamento, de encantamento causado pela primeira vista, perdeu-se de vez.

Antes, as pessoas quando iam para um determinado lugar, seria a primeira vez que elas iriam, de fato, ver aquela paisagem. Após a fotografia, e demais mídias de registro visual, nós passamos a reconhecer os lugares, confrontando-os com as imagens que temos no armário de lembranças da nossa alma. Lembranças de filmes que assistimos, que tinham aquela paisagem como cenário, ou de algum acontecimento que foi noticiado pela imprensa e assim por diante.

Além disso, há outro elemento, muito discreto, que é a forma como os registros fotográficos passaram a afetar a nossa capacidade de apreensão da realidade e de descrição do mundo à nossa volta.

Antes do seu aparecimento, quando íamos para algum lugar, ou quando testemunhávamos algo, para podermos comunicar aos demais, precisávamos ser capazes de descrever, com riqueza de detalhes, o que as meninas de nossos olhos viram e, para tanto, era imprescindível que nós fôssemos habilidosos no manuseio das palavras e, principalmente, que nossa atenção realmente estivesse presente por inteiro aos acontecimentos para realizarmos bem essa tarefa.

Agora, com o advento do registro fotográfico e similares, ficamos mais distraídos. Ao invés de nos esforçarmos para descrever o que os nossos olhos viram, apenas mostramos o que foi capturado pelas lentes e, por conta disso, não mais prestamos tanta atenção assim naquilo que estamos vendo, ouvindo e vivendo.

E se isso foi sendo gestado, lentamente, com o advento das fotografias, com toda certeza, não parou nelas. Por isso, penso que devemos nos perguntar, com serenidade: o que uma sociedade monstruosamente midiatizada como a nossa está fazendo com a nossa humanidade? O quanto as novas mídias, o quanto as plataformas digitais e demais traquitanas do gênero, tem contribuído para a dissolução de nossa capacidade de atenção, para a fragmentação e para o empobrecimento da nossa memória?

Sobre esse ponto, o filósofo Byung-Chul Han, em seu livro “Do Desaparecimento dos rituais”, nos faz uma terrificante advertência, lembrando-nos que o déficit de atenção que hoje pesa sobre nós – sobre todos nós – é o resultado da abusiva intensificação daquilo que poderíamos chamar de “percepção serial” que, nada mais seria que uma visão bulímica e extensiva da vida.

Antes das mídias modernosas, nossa atenção era convidada a concentração, a manter-se intensa naquilo que estávamos realizando. Dito de outro modo, cultivar a atenção em algo é sinônimo de parar, de demorar-se em alguma coisa e, ao fazermos isso, estávamos dando-lhe a devida importância por reconhecer nela algo de valor.

Na “percepção serial” não. Segundo Byung-Chul Han nossa atenção tem seu foco furtado pelo fluxo de novidades, levando-nos a correr de uma informação para outra, de uma experiência para outra, de uma sensação para outra, sem fazer nada direito, sem compreender nada em profundidade, sem terminar nada com zelo e responsabilidade.

Não paramos mais diante de algo. Apenas passamos por tudo, lembrando de quase nada e aprendendo muito pouco. Mas sempre estamos nos atualizando, não é mesmo? Estamos atualizando nossos aplicativos, estamos sempre de olho no fluxo sem fim de notícias, no correr frenético do feed de nossas redes sociais, e sempre seguindo a onda serial que nos é apresentada pela grande mídia, que jura de pés juntos, que aí está para nos “informar”, mas nunca, nunquinha, paramos para nos demorar em algo para aprofundar nosso conhecimento.

Detalhe importante: quando falamos da perda de concentração, estamos falando de pessoas que têm uma atenção menor que a capacidade de foco de um peixinho de aquário.

Isso mesmo! Segundo estudos, em 2013, a capacidade média de atenção da galera era de oito segundos, ou seja, menor que a capacidade de atenção de um peixinho dourado e, algo me diz, que esses números não melhoraram nos últimos 10 anos e, infelizmente, não há nada que indique que irão melhorar nos próximos dez, tendo em vista a idolatria que se cultiva em torno das traquitanas tecnológicas que são enfiadas goela à baixo e misturadas com tudo, confundindo-se com tudo e, principalmente, confundindo a todos nós.

Pois é, se não pararmos para refletir seriamente sobre essas questões, em breve não restará muito para salvaguardarmos de nossa fragmentada memória, de nossa atenção desvirtuada, enfim, da nossa mirrada personalidade, nem mesmo uma fotografia esmaecida pelo tempo.

(*) professor, escrevinhador e bebedor de café. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas. Autor de “A Bacia de Pilatos”, entre outros livros.
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