por Dartagnan da Silva Zanela (*)

Muitos são os personagens que deram forma a nossa história e, de quebra, contribuíram para o nosso jeito brasileiro de ser.
Cada um a seu modo, imprimiu na alma nacional, marcas indeléveis com suas lutas pessoais.  Marcas que, diga-se de passagem, confundem-se com a história desta terra de desterrados chamada Brasil.

Deste mar sem fim de personalidades, penso que a figura de Amador Bueno da Ribeira merece, com toda certeza, um destaque todo especial, porque ele representa uma forma singular, um traço marcante que pode, em alguma medida, inspirar-nos quanto ao modo como vivenciamos a brasilidade nossa de cada dia.

Amador Bueno, descendente de portugueses, espanhóis e tupiniquins, que viveu entre os séculos XVI e XVII em São Vicente, é simplesmente o homem que foi aclamado pelo povo como rei dos paulistas, mas que, não quis sê-lo.

Como é do conhecimento de todos, em 1578, o rei Dom Sebastião reinava em Portugal. Rei moço, impetuoso e teimoso, enfiou na cabeça que deveria enfrentar os Mouros no Marrocos e, por conta disso, lá se foi ele para pelejar na batalha de Alcácer-Quibir, achando-se o último cruzado da cocada lusitana.
Por conta disso, logo na primeira batalha, Dom Sebastião desapareceu. Escafedeu-se. Como o rei tomou Doril, seu tio, o cardeal Dom Henrique assumiu o trono. Tudo certo, tudo resolvido, porém, Dom Henrique já estava bem velhinho e, dois anos após sua coroação, acabou batendo as botas. Não havendo sucessor para o trono, o rei Felipe II da Espanha assumiu a parada, porque era o parente mais próximo dos falecidos. Esse foi o início da tal União Ibérica.

E o que isso tem que ver com o tal do Amador Bueno? Tudo, cara pálida. Tudo.

Em 1640, o Duque de Bragança junto com uma portuguesada, proclamaram a independência da terrinha e o coroaram rei. Era 01 de dezembro de 1640.

A notícia chegou ao Brasil e as almas que aqui viviam até que receberam bem a notícia, porém, a coroação do novo rei não foi saudada com vivas em São Paulo, especialmente na cidade de Piratininga que, na ocasião, deveria ter algo em torno de uns mil habitantes.

Enfim, como naquele tempo não havia whatsapp, a notícia se esparramava de boca em boca, de praça em praça e, estando todos reunidos na praça de Piratininga, após um breve discurso, anunciando a novidade, foi pedido a todos um juramento de fidelidade ao novo rei.

O silêncio pairou sobre todos por um breve momento até que, um abençoado disse que não deveriam fazer isso. Ora, se Portugal se tornou independente da Espanha, porque eles não poderiam se tornar livres de Portugal? Por quê?

A ideia foi muito bem recebida pela galera da geral, porém, quem seria o rei dessa birosca? Quem? Raimundo Nonato? Não! Amador Bueno da Ribeira.

Após seu nome ter sido entoado pela multidão, todos se dirigiram para sua casa para lhe dar a boa notícia, afinal, não é todo dia que somos aclamados como rei de alguma coisa, não é mesmo?

O problema era que seu Amador era um homem sem grandes ambições. Aliás, segundo os cronistas da época, era um caboclo bem equilibrado, preferindo manter distância das, como direi, grandes emoções.

Quando ele ouviu a zoada na rua, foi até a janela para saber o que era e, quando soube, se negou e, por conta disso, a multidão disse com todas as letras: “ou aceita, ou morre! Ou a coroa, ou a morte”!
Ao ouvir tal proposta, nosso amigo, estrategicamente fugiu pelos fundos e foi se refugiar no mosteiro de São Bento.

Vendo a turba na rua, o superior do mosteiro foi até eles para acalmá-los, para dissuadi-los dessa ideia, lembrando-os que, um rei, para governar com serenidade e amar a justiça, deve ter consciência da sua realeza.
Dito de outro modo: um líder deve ter consciência de sua autoridade. Pois é. Neste caso, não há ninguém com mais autoridade do que aquele que governa a si mesmo.

Amador Bueno, tinha consciência de não ser rei e isso o tornava um homem livre. Livre como nenhum rei nunca foi e jamais será.
Aliás, ele nunca almejou sê-lo. Sabia muito bem quem era e estava muito satisfeito com isso. O banquinho dele não era um trono, mas era dele e era nele ele queria estar.

Nesta altura do campeonato, vale a pena lembrar as palavras de Pierre-Joseph Proudhon que, certa feita havia dito: “aquele que botar as mão sobre mim, para me governar, é um usurpador, um tirano. Eu o declaro meu inimigo.” Pois é. Amador Bueno conseguiu a façanha de criar uma multidão de inimigos por não querer governar ninguém.

Detalhe importante: ele não era um santo. Tinha inúmeros defeitos, cometeu inúmeras barbaridades em sua vida, como todos nós. Defeitos que, diga-se de passagem, contrastavam com suas qualidades como, aliás, acontece com cada um de nós e, tal contraste, tornou-o um homem comum como inúmeros outros que passaram pela vida e, silentes, adentraram para a história.

Sim, ele era apenas um homem comum e, por isso mesmo, perante aqueles que vivem em torno do poder, feito moscas que arrodeiam um pedaço fresco de excremento, ele parecia-lhes um ser de outro mundo. Um trem incompreensível. E o era porque ele apenas desejava ser um homem comum, com uma vida comum e, por isso mesmo, como diria G. K. Chesterton, ele foi uma figura extraordinária.

Podemos dizer que, de um modo heroico, ele colocou em prática o velho ensinamento bíblico que nos adverte, dizendo: de que adianta ao caboclo conquistar o mundo se ele perder sua alma? De que serve uma conquista dessa? Isso mesmo. Pra nada.

Quando voltamos nossos olhos para os incontáveis homens comuns do século XXI, constatamos que, da mesma forma que Amador Bueno, do século XVII, eles não querem uma coroa. Não querem ser reis, nem presidentes, nem deputados, nada disso. Eles desejam apenas ser quem eles são: pessoas comuns, com suas vidas comuns e, por isso mesmo, acabam sendo figuras incomuns diante daqueles que não são nada sem os seus cargos de araque e seus títulos furados.

E nada são porque perderam-se de si mesmos para estar onde estão, com aquela pompa que, como tudo o mais neste mundo, um dia tornar-se-á um punhadinho de pó.

 
(*) professor, escrevinhador e bebedor de café. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas. Autor de “A Bacia de Pilatos”, entre outros livros.

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