Por Bruno Zampier
Há alguns anos atrás li “O Crocodilo”, do escritor russo Dostoiévski (aliás, aproveito a oportunidade para registrar que se trata do melhor escritor de literatura de todos os tempos). Trata da história de Ivan Matviéitch, um funcionário público que trabalha em uma galeria de exposições. Certo dia, ao transitar pelos corredores fiscalizando os objetos, acaba engolido vivo por um crocodilo que ali estava exposto. Na imaginação de Júlio Verne ou de Herman Melville certamente este enredo daria origem a uma insólita aventura. Na imaginação de Dostoiévski, serviu de pretexto para elaborar uma das melhores e mais irônicas críticas ao funcionalismo público da história da literatura.
Inicialmente, o fato inusitado gera preocupação, mas logo a notícia se espalha, despertando a curiosidade do público. As visitações à galeria triplicam e com elas, o lucro. O que era um problema a ser resolvido com urgência, passa a ser uma oportunidade para gerar receita e criar um novo departamento lotado de funcionários só para cuidar do assunto. O chefe do departamento se reúne com outros secretários e resolve que o funcionário devorado – mas ainda vivo e em segurança na barriga do crocodilo – deverá repassar informações úteis aos biólogos a respeito do sistema digestivo do grande réptil, de modo que a permanência daquele funcionário naquele local de trabalho inusitado passa a ser justificada em nome da pesquisa e da elaboração de dados estatísticos. Também fica encarregado de conversar com os visitantes, gritando para ser ouvido lá de dentro da barriga da fera, de maneira a estimular a curiosidade.
Por sua vez, o funcionário passa a exigir uma comissão, tendo em vista que sua carga horária aumentou exponencialmente (agora, permanece 24 horas por dia na repartição pública, em serviço). A arrogância e a presunção sobem-lhe à cabeça e ele passa a se considerar um grande benfeitor da humanidade, tendo em vista que seu trabalho renderá grandes descobertas à ciência, para progresso da humanidade. E assim Dostoiévski vai tecendo algumas tiradas sarcásticas e implacáveis. Uma delas é esta:
Eu vou demonstrar que mesmo deitado de lado, ou melhor, que somente assim deitado é que se pode transformar a sorte da humanidade. Todas as grandes idéias e a orientação dos nossos jornais e revistas foram geradas provavelmente por gente deitada de lado. Eis por que são chamadas idéias de gabinete; mas pouco importa que assim as chamem! Vou inventar todo um sistema social, e você não acreditará em como isto é fácil. Basta ir para um canto bem afastado ou para o bucho de um crocodilo, fechar os olhos e, no mesmo instante, se inventa um verdadeiro paraíso para a humanidade. Quando você me deixou, eu me pus no mesmo instante a inventar; já inventei três sistemas e estou preparando um quarto. É verdade que se torna necessário, primeiramente, negar tudo; mas é tão fácil negar estando dentro do crocodilo![1]
Caso o leitor queira saber o restante da história e o destino de Ivan Matvieítch, sugiro dois caminhos possíveis. Um deles é comprar o livro. O outro, aproveitando o ensejo das eleições municipais, é visitar as galerias em qualquer prefeitura do Brasil, onde há uma fauna muito mais rica em exposição. Além de crocodilos, há muitas baleias, elefantes e inclusive dinossauros do período jurássico expostos à visitação. Tente abrir ou fechar uma empresa, construir uma casa ou regularizar um terreno e você poderá conhecer um Ivan Matvieitch, cheio de orientações, comissões, uma vasta papelada e muitos carimbos para organizar e facilitar sua vida. Não se surpreenda se ele estiver, digamos, deitado de lado.
[1] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O Crocodilo – e Notas de Inverno Sobre Impressões de Verão. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 45.