Rubem Braga, em seu livro “A traição das elegantes”, nos conta uma memória sua, dos seus tempos de guri. Conta-nos que, num certo dia, quando estava indo para a escola, encontrou seus coleguinhas fazendo o caminho inverso. Vendo isso, perguntou-lhes o que aconteceu e estes, efusivamente, cantarolando, diziam: “Rui Barbosa morreu! Rui Barbosa morreu! Rui Barbosa morreu”!

Rubão diz-nos que, em sua meninice, não sabia quem era esse tal de Rui Barbosa, mas lembrava claramente das falas dos adultos sobre ele. Uns diziam que era o homem mais inteligente do Brasil, grande patriota e que tinha assombrado o mundo com as luzes de sua mente. Porém, muitíssimos diziam que ele era um vendido [que ele tinha se colocado contra a vacinação obrigatória], que não valia nada e assim por diante.

Bem, todos nós hoje sabemos quem é Rui Barbosa e temos uma clara noção da sua grandeza.

Se deixarmos as memórias de Rubem Braga de lado e voltarmos um cadinho no tempo – na verdade um tantão – e irmos diretamente para a Grécia Antiga, veremos que, por exemplo, Sócrates não teve assim um fim que cause inveja a ninguém.

Lembremos que os atenienses, instigados por Mileto, condenaram-no a beber a Cicuta, a tirar a própria vida, porque ele aporrinhava a todos com suas socráticas ironias sem fim, porque ele [supostamente] corrompia a juventude com seus questionamentos inapropriados, porque demoliu os consensos hipócritas que imperavam na polis, porque [hipoteticamente] ameaçava as instituições da cidade-Estado, porque teria formado uma seita que ameaçava o culto dos deuses vigentes e toda aquela lengalenga que todos nós já estamos cansados de saber, mesmo que não tenhamos aprendido nada com isso.

Pois é. Sócrates morreu e seus sicários, e muitos incautos da sua época, se rejubilaram com seu fim.

E o que dizer de Platão que apoiou um tirano de Siracusa, Dião era seu nome. Como todos nós sabemos o final de sua, como direi, aventura política, não deu muito certo não. Como dizem os guris, “deu ruim”. Mas sua obra ficou, porque ela era e é maior que seus tropeços e fracassos.

E quanto a Aristóteles? Bah! Quando Alexandre Magno, seu ex-aluno, foi para terra do pé junto, iniciou-se uma perseguição sinistra movida por um sentimento antimacedônico raivoso [ao estilo “ódio do bem”]. Por causa de sua ligação com o imperador Macedônico, Aristóteles teve que vazar de Atenas e foi para Cálcis, na ilha Eubeia, onde morreu, ostracizado. Isso mesmo! Ele foi cancelado. Exilou-se, dizendo que não iria permitir que os atenienses pecassem duas vezes contra a filosofia. Bastava o que haviam feito com Sócrates.

Saindo da Grécia, e vindo diretamente para a Terra de Vera Cruz, iremos dar de cara com um tal de Vieira. Padre Antônio Vieira, o imperador da língua portuguesa, segundo o poeta português Fernando Pessoa.

Bem, como todos já podemos imaginar, a vida do nosso patrício também não foi nem um pouco doce. Conspirações contra ele abundaram, acusações levianas não foram poucas; inclusive teve de responder a um processo junto ao Tribunal do Santo Ofício que, ao final, acabou sendo arquivado. Ele terminou seus dias na Bahia, doente, sem poder escrever de próprio punho. Próximo aos finalmente, perdeu a sua poderosa voz.

Se zarparmos, agora, da Bahia, e ficarmos ziguezagueando pelas turbulentas águas da história, iremos dar de cara com vários casos similares aos de Rui Barbosa, Sócrates, Platão, Aristóteles e do venerável Padre Vieira e, em todos, encontraremos uma nota, um ponto em comum, que é o peso da mendacidade do dia a dia que não mede esforços para calar e vilipendiar todo aquele que esforça-se para elevar sua cabeça acima dos plúmbeos ares que sufocam a mente e a alma humana.

Isso mesmo. Uma das coisas que marcam o dia a dia de todas as épocas, sem sombra de dúvida, é a mediocridade e, junto com ela, as picuinhas que brotam no coração humano e passam a despejar o seu pólen pútrido pelos quatro ventos. Porém, a força das picuinhas apenas se expressa na efemeridade do momento. Quando a efemeridade dos dias passa, elas, as insídias e futricas, fenecem e, com o tempo, desaparecem.

Ora, onde estão as maquinações que foram fomentadas em torno de Rui Barbosa? Onde estão os mexericos que faziam a respeito de Sócrates? Onde se encontram os buchichos contra Platão e as perseguições perpetradas contra Aristóteles? Qual foi o lugar reservado às conspirações que foram armadas contra a pessoa do Padre Antônio Vieira? Com toda certeza não é o mesmo que é ocupado pelas obras deles. Obras as quais procuravam chamar a atenção dos parvos da sua época – estivessem estes investidos de poder ou não – para o rosário de equívocos que eram suas vidas.

Agora, quando essas almas aquilatadas morrem, gradativamente, suas obras, cada uma ao seu tempo, começam a expandir a sua influência e ampliar o seu poder de ação e, isso se deve, por uma razão: da mesma forma que as almas aquilatadas partem dessa vida, as medíocres um dia também encontram o seu momento derradeiro e, com eles, vão-se as picuinhas e impropérios que vertiam de suas vísceras inundadas de caprichos e ressentimentos.

E essa impostura manifestada por muitos, em vários momentos da história, sinaliza para um terrível problema que, em certa medida, afeta a todos – uns com mais intensidade, outros com menos – que é o fato de que, muitas vezes, muitíssimas pessoas leem uma obra (quando leem) não com os olhos, mas sim, com o fígado. Aí meu amigo, não sai nada que preste mesmo. Nadica de nada.

Pior. Incontáveis vezes, não poucas almas, confundem as picuinhas do dia a dia com a obra de um escritor ou de um filósofo, tendo em vista que o horizonte de percepção e de consciência desses indivíduos, infelizmente, não consegue elevar-se minimamente acima dos sulfurosos ares da mediocridade reinante, seja essa aleivosia midiatizada ou não.

Por isso, é tão importante, como nos ensina Isaías, o Anacoreta, que examinamos todo dia, de forma atenta, o nosso coração, perguntando: que paixões existem nele? Qual o poder dessas ditas cujas sobre nós? Qual a amplitude desse poder degradante? Tal exame é imprescindível porque, frequentemente, tais paixões, fantasiadas com toda ordem de justificativas, sempre acabam deixando uma e outra semente nefasta em nossos átrios e ventríloquos.

Abre parêntese: por essa razão, também e principalmente, é tão importante rezarmos por essas figuras, sejam elas quem forem porque, definitivamente, elas não sabem o que dizem, muito menos o que fazem. Fecha parêntese.

Isso posto, torna-se claro e cristalino que, com o passar dos anos, as gerações vindouras acabam tendo a felicidade de poder ter acesso a obra dos gigantes, limpas da imundice passional do momento. Foi assim com inúmeras figuras no correr da nossa história e sempre será, porque, como bem nos ensina Santo Tomás de Aquino, a verdade é filha do tempo.

Quanto à obra do finado filósofo Olavo de Carvalho, o tempo dirá, mas, algo me diz, que a resposta que será dada por ele, pelo tempo, irá desconcertar incontáveis línguas maldizentes.

Por fim, para a sorte dos maldizentes, existem as redes sociais para que não tenham que ficar guardando toda essa bile que, se guardada for, pode terminar causando uma baita gastrite nervosa, não é mesmo?

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela

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