Tem momentos em que a mente pode refletir livremente. Como quando um cidadão qualquer, esperando a chuva passar, depois de ter andado por todas as seções do mercado em busca de novidades, pode então deixar fluir as ideias sem limite. Assim a vida pode mostrar sua riqueza e complexidade de modo vasto.
Os pequenos canais já não davam conta de tanta água em um só dia. Em pé na calçada ficou apenas um velhinho, que apesar de toda aquela chuva não se movia. Ele olhava para um dos outdors da esquina, onde tinha uma frase ao estilo de Banksy que dizia: Já não nos é possível ignorar uma razão instrumental, mas, não seria também necessário que nos atentássemos para uma fé que talvez seja também instrumentalizada?
O velho continuou lá por muito tempo. Feito uma estatua. Na casa dos setenta anos de idade sua atitude era bem estranha. Ele deveria estar em casa curtindo o aconchego de um lar, com sua família, mas estava ali parado. Parado como se fosse um poste. Como se não houvesse chuva alguma – que na verdade o encharcava cada vez mais.
Passado algum tempo a chuva parou, mas a água continuou escorrendo das roupas encharcadas do idoso. Dava pra ver que era uma água fétida, suja, nojenta. Alguém atento se aproximou e até se deu ao trabalho de perguntar, “de onde o senhor teria vindo?” Não houve resposta. O velho caiu duro no chão. Uma multidão então se reuniu dando inicio a uma disputa pelos documentos da criatura. Bolso é o que não faltava. Tinha uma calça cheia deles e dos mais diversos formatos, todos continham alguma coisa. O estranho é que em cada bolso era encontrada uma identidade diferente, e mais estranho ainda, é que todas aquelas identidades atendiam sempre pelo mesmo nome[i].
Seria oportuno imaginar uma longa conversa entre o cérebro, que ciente de suas capacidades bem como de suas limitações, respeitasse a condição de todos aqueles bolsos. Ao questionar “você não está meio furado?”, quem diria que o teor da resposta fosse tão diverso, “Os escalpos já não são mais divertidos; Guardo uma lamina aqui dentro de mim; Aceita que tudo dói menos; Sou mais uma vítima do monstro que combati; Só se estupra quem merecer; Não fraqueje que nasce menina; Tem gente que não serve nem pra procriar; Eu nunca preguei o ódio” – o cérebro assustado pedia calma que os ânimos se exaltavam a ponto de não ser mais possível prever o alcance de tais pensamentos. Saltando de um bolso a outro, misturando-se e crescendo, nos mais diversos tons, aquelas palavras grudavam como carimbos[ii].
O cérebro
teria de trilhar perspectivas variadas sem contar com a paciência de nenhum
dos bolsos. Não é esperado que um bolso se de ao trabalho de pensar,
pensar é coisa de cérebro. A
existência de um bolso implica em carregar, guardar ou esconder alguma coisa – sentindo-se
bastante maltratados por um mundo que acreditam carregar nas costas, creem que
agora é o momento de uma revolta de seu Atlas
interior[iii].
Eles se abrem uníssonos em um berro monstruoso: “olha o que vocês fizeram com
nosso país!”.
[1]Carlos de Jesus Lima – graduado em Filosofia e Ciências Sociais – E-mail: sentidofocado@gmail.com – buscando por um pouco de razão que salvaguardada do instrumental possa ainda permanecer implicada com os devaneios de nossa época.
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[1] Segundo Sílvia Viana, professora de Sociologia da Fundação Getulio Vargas (EAESP/FGV), em seu texto BARBARIE: compartilhar (2017),“Sabemos da barbárie e acostumamo-nos com ela. Mais que isso, participamos cotidianamente de sua exposição espetacular” (…)”trata-se ainda da produção calculada do espetáculo, mesmo que o manejo das quantidades seja terceirizado ao espectador empoderado, por exemplo, na forma de ‘curtidas’, nosso Ibope pessoal. Ou, no caso da revolta, o rostinho vermelho emburrado, afinal a customização é, hoje, a alma do negócio”. As informações são apresentadas, assimiladas e reconduzidas ao ponto de se criar uma rede, que às vezes parece ter vontade própria – carece de uma demorada reflexão, um estudo capaz de evidenciar como as imagens e as palavras desconexas vêm sendo capazes de mobilizar muito mais do que argumentos rigorosamente construídos. Chegamos ao ponto onde o individuo tem uma perda de controle de suas próprias ideias ao mesmo tempo em que se acredita ter total domínio sobre as mesmas – repentinamente os perfiz sociais se apresentam como se soubessem tudo e sobre tudo – o que por vezes busca deslegitimar a investigação cientifica.
[1] O professor da disciplina de Historia Contemporânea, Lincoln Secco, da Universidade de São Paulo, nos apresenta em seu GOLPE DE TOGA (2017), uma ideia assustadora acerca de um possível fascismo a moda brasileira, “Na longa duração do nosso sofrimento, a ditadura jamais acaba. Ela é a expressão do genocídio de ex-escravizados, que trouxeram a marca da perseguição na própria pele”. Desse modo, a crise de nossas instituições democráticas e de modo geral a criminalização de toda a política, acaba por dar vazão inclusive aos mais absurdos casos de violência, ao mesmo tempo cotidiana, uma reação fundada na crença de que é justa e necessária como combate às lutas e/ou conquistas de direitos – passa-se a considerar então, isto é, a fantasiar como sendo privilégios –, ações em torno de direitos trabalhistas, combate ao racismo, demarcação de terras indígenas, combate a homofobia, direitos da mulher, entre muitas e muitas outras coisas.
[1] O desejo de reagir é manifesto violentamente, inclusive por gente que supomos estar bem informada, com formação acadêmica e tudo. Esse sentimento de revolta, que ao invés de indicar algum partidarismo para com obra da escritora Ain Randy (o que também não ajudaria em nada para se justificar), na verdade se revela como mais um sintoma – um desejo latente de violar. É algo que já existia, mas que agora uma parcela cada vez mais crescente da sociedade, vem se sentindo autorizada em expressar.