Conta-se que o escritor Julian Green sempre foi muito sensível ao mundo noturno dos temores infantis; ao mundo dos temores infantis e bem como das alegrias pueris. Infelizmente, com o passar do tempo, tais imagens, que encantavam o referido escritor, acabam por cair nas brumas do esquecimento que pairam sobre o coração de cada um de nós.
E o que é mais chamativo nesse fenômeno – de desdém dos primeiros anos de nossa vida – é que, ao mesmo tempo em que matamos a criança que há em nós, acabamos por viver os nossos dias da vida adulta de modo infantil; o que, por sua deixa, demonstra, ao seu modo, a nossa profunda incompreensão do ensinamento de Cristo, quando Este disse que o reino dos céus seria das criancinhas (Matheus XVIII; 1-6).
Das crianças, não das almas soberbas e infantilizadas.
Sobre isso, ocorre-me agora uma passagem de G. K. Chesterton, onde ele nos fala algo que considero muito bacana. Diz-nos ele que para impressionarmos uma alma adulta [brutalmente infantilizada] com a abertura duma porta, esta abertura deverá ser feita em meio a inúmeros efeitos especiais, com jogos de luzes e tudo mais. Agora, se o nosso intento for o de impressionar uma criança, basta que abramos a porta que ela dirá “uau”.
As crianças, dum modo geral, anseiam conhecer o mundo como ele é, porque este, em si, é fascinante. Já os adultos, como eu e você, encontramo-nos brutalizados pela monotonia do dia a dia e degradados pelo vicioso despejar de “novidades” em nossas vistas e, por isso, acabamos por perder esse encanto pela realidade e, de modo similar a um viciado em drogas, acabamos sempre procurando e querendo uma nova experiência mais e mais, como direi, “fascinante”.
Resumindo o entrevero: quando crianças, nossa inteligência encontra-se afiadíssima e, por isso mesmo, voltada para a ampliação de nossa alma para melhor abarcar o mundo real com suas inúmeras nuanças.
Doutra parte, conforme envelhecemos, nossa inteligência vai oxidando, devido ao distanciamento das realidades primeiras, em favor daquilo que nos é ofertado pela efemeridade do presente que, em pouquíssimas palavras, é tão superficial quanto estridente e chamativo e, deste modo, devido a essa limitação severa do horizonte de nossa alma, ansiamos tolamente por encontrar os mais variados meios que nos permitam reduzir o mundo a um esquematismo simplório; esquematismo esse que emoldura a nossa maneira de ver e viver a vida, para que esta possa caber direitinho nas limitadas dimensões de nossa apequenada alma. Miúdas, mas toda adornada com quinquilharias tecnológicas.
Ou seja: quando resgatamos esse olhar de criança com o qual procurávamos sinceramente conhecer as facetas da realidade, inevitavelmente deixamos de agir de modo infantilizado como frequentemente agimos.
Podemos dizer, sem medo de errar, que o modo de ver duma criança é similar àquilo que Edmund Hurssel chamava de retornar às coisas mesmas, um olhar que procura ver as coisas como de fato elas são. Tal atitude, difere substancialmente do olhar infantilizado da vida adulta contemporânea, mimada e emotivamente tóxica, que projeta sobre a realidade os seus demônios interiores sem nome, vendo os acontecimentos e as pessoas como ela doentiamente imagina e diz que eles são.
Infelizmente, tornou-se quase que uma regra entre nós esse tipo de impostura que, a cada dia que passa, mais e mais cedo é apreendida e assimilada.
Esse papo todo fez-me lembrar doutra coisa, duma passagem do livro “Além do bem e do mal” do famigerado bigodudo, Nietzsche, onde o mesmo dizia, entre outras coisas, que a maturidade consiste em reencontrarmos a seriedade que, quando crianças, colocávamos nos jogos e brincadeiras. Reencontrar a seriedade perdida, não o desejo de transformar tudo em brincadeira, como é pregado por muitos na atualidade.
Um jogo, ou uma brincadeira, quando vistos através do olhar duma criança, apresenta-se como algo levado com uma profunda e luminosa seriedade. É um trem bonito de se ver, diga-se de passagem. Porém, com o passar dos anos, paulatinamente, vamos perdendo essa seriedade e, de modo infantil, vamos levando na flauta as nossas obrigações, que são, ao seu modo, os “jogos” que fundamentam aquilo que seria a vida adulta; como se nossos deveres fossem brincadeiras tolas que não merecessem a nossa atenção.
Digo isso, de modo particular, frente ao desleixo que muitas vezes é manifesto por adultos, como eu e você, frente a responsabilidade, diante do compromisso que temos para com nossos filhos.
Ao invés de vivermos a paternidade, e a maternidade, com o olhar duma criança, preferimos muitas vezes ocupar o nosso tempo com qualquer “brincadeira” fútil, tão típicas de homens e mulheres mimados e mimizentos, que preferem qualquer bobagem superficial para ocupar o seu tempo ocioso e, assim, encontrar uma justificativa para sua indisfarçável imaturidade fundamental.
Enfim e por fim, devemos procurar ser e ver como os pequeninos para merecermos o reino dos céus (Matheus XIX; 13-15); e, tal atitude existencial, não significa que devemos agir feito um abestalhado, mas sim, reencontrarmos a sinceridade e a responsabilidade por nós perdida. Perdida por não mais ter sido cultivada por nós em nosso coração.
Escrevinhado em 17 de agosto de 2019,
por Dartagnan da Silva Zanela.
Do fundo da Grota: http://zanela.blogspot.com/