A filosofa húngara Agnes Heller chama-nos a atenção para a força do cotidiano na formação de uma sociedade; uma força silente que não apenas influencia a nossa forma de encarar a vida no dia a dia, mas também acaba por pesar sobre as linhas que dão contorno aos grandes eventos e aos longos processos históricos.

Nesse sentido, da mesma forma que muitas vezes refletimos sobre os acontecimentos do presente à luz das experiências vividas no passado e, noutras vezes, matutamos o passado a partir das perspectivas do presente, também é um exercício meditativo muito profícuo pensarmos os grandes eventos e processos históricos a partir dos contornos do dia a dia e, é claro, ponderarmos o cotidiano através da perspectiva dos grandes acontecimentos que rasgam de cima a baixo as páginas amareladas do devir histórico.

Diante disso, penso que nessa sexta-feira, dia de Santa Rita de Cássia, fomos brindados com uma cena do dia a dia do Planalto Central para refletirmos sobre a conjuntura em que se encontra o nosso acabrunhado país. Estou me referindo a divulgação do famigerado vídeo da reunião ministerial que foi realizada no dia 22 de abril do corrente ano, vídeo esse que, segundo o senhor Sérgio Moro, provaria por A mais B que o presidente Jair Bolsonaro teria interferido, ou que teria a intenção de interferir, nas investigações da política federal.

Pois é. O vídeo saiu. Todo mundo viu. Viu uma cena do cotidiano do atual governo. Uma cena sem maquiagem publicitária, apenas o dia a dia nu e cru. Mas o atual governo usa algum verniz publicitário? Enfim, o que admira é que o dia a dia nu e cru, longe dos cínicos olhares midiáticos é o mesmo de sempre, só que mais cru.

No fundo, nada muito diferente, aparentemente. E se olharmos mais de perto podemos ver muitas coisas que realmente nos chama muita a atenção. Muitas, mas, peço licença para ater-me apenas a uma só.

O senhor Jair Bolsonaro, parlando nessa reunião, revela-se como ele realmente é: um homem comum que tem em suas mãos um abacaxi extraordinário. Um homem que está falando com o peito aberto sobre tudo o que está afligindo-o. Ele falou, como diria Cecília Meireles, com o seu coração na mão, ao contrário de muitos governadores e prefeitos que estão com outra coisa em mãos.

E de tudo o que ele disse havia uma preocupação central: a preservação da liberdade do povo brasileiro. Disse ele, com seu estilo “tiozão do pavê”, que um povo armado jamais será escravo. E ele está certíssimo quanto a isso. Ora, os cidadãos atenienses, antes de qualquer coisa, eram pessoas armadas que defendiam a polis quando essa clamava. Os colonos das Treze Colônias apenas foram capazes de romper com os grilhões de sua metrópole, tornando-se os Estados Unidos da América, porque eram homens armados. Canudos resistiu até o último homem porque os Conselheiristas estavam armados para defender o sonho do Arraial de Belo Monte. Já o pobre povo venezuelano, que padece de fome sob a borduna do chavismo, atualmente nas mãos rechonchudas de Maduro, está condenado à tirania do socialismo do século XXI, porque está desarmado. Porque foi zelosamente desarmado em nome dum bem maior.

E vejam como o dia a dia é algo mui interessante e nos brinda com algumas imagens que nos ajudam a matutar certas coisas. Bolsonaro era e é rotulado pela esquerda como sendo um fascista, como se ele fosse uma espécie de Benito Mussolini tropical e, no frigir dos ovos, numa reunião a portas fechadas, o que inquieta o homem é justamente as forças políticas internas e externas que querem cercear a liberdade do povo brasileiro. Ele quer que o povo tenha meios para preservar a sua liberdade, não retirá-la. Bem, mas como a esquerda e a extrema-impressa provavelmente continuarão rotulando Bolsonaro de fascista, podemos dizer que não se fazem mais fascistas como antigamente.

  

Diante disso, creio que seja interessante compararmos essa cena, do dia a dia bolsonarista, com outras que são do conhecimento de todos. Certa feita, em 29 de setembro de 2005, o senhor Lula da Silva disse, em alto e bom tom, que o problema da Venezuela é que ela tem excesso de democracia e, recentemente, declarou: “ainda bem que a natureza criou o coronavírus”, para lembrarmos que somente o Estado pode nos salvar de certas crises. Mudando de saco pra mala, mas sem sair dos trilhos, em janeiro de 2019 a senhora Gleisi Hoffmann, na condição de presidente nacional do PT, foi para Venezuela cumprimentar Maduro pela sua “reeleição” e manifestar seu apoio ao mesmo. Que cena foi essa. Que cena.

Enfim, tais fatos, juntos e misturados, formam um retrato curioso da “resistência democrática” rubro tupiniquim. Pois é, podemos, de certa forma, dizer que não se fazem mais democratas como antigamente.

A divulgação desse vídeo, obviamente, não transforma o atual presidente em um grande estadista. Sejamos francos, o homem deu inúmeras caneladas e, bem provavelmente, dará inúmeras outras, porém, as imagens dessa reunião revelam para todos quem ele é: apenas um homem comum, sincero e atrapalhado feito bolacha na boca de um banguela; franco em suas palavras e intenções.

E verdade seja dita: numa sociedade que, como bem nos ensina Nelson Rodrigues e Machado de Assis, tem a dissimulação como pedra angular não tem como não se escandalizar com alguém assim.

Tendo isso em vista, penso que vale muito a pena dar uma passadinha pelo twitter para ver as manifestações de inúmeras autoridades e figuras públicas sobre o dito vídeo. Verdade. Seria interessante compararmos as impressões divergentes sobre esse ocorrido. Na realidade, sobre qualquer ocorrido.

E quanto ao Cthulhu? Bem, ele não estava presente na reunião e não tem nada que ver com essa história toda. Quer dizer, de certa forma tem, mas se o amigo leitor deseja saber que trem fuçado é esse, procure as obras H. P. Lovecraft. Lá o tal do Cthulhu lhe será apresentado.

Agora, me deem licença, mas eu preciso muito de uma boa xícara de café.

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela, em 23 de maio de 2020, dia de São João Batista de Rossi.

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