Hoje pela manhã, enquanto o sol preguiçosamente alevantava no horizonte, cá estava esse que vos escreve, com uma xícara de café sentado ao lado do meu velho e bom amigo Percy, meu cachorro mais velho, afagando-o e matutando sobre a velhice dele e, é claro, sobre a minha também.

Eu, branqueando as madeixas a passos largos e ele, tadinho, perdendo os dentes no mesmo ritmo.

Enfim, velho estamos, mas não é a respeito disso que quero assuntar não. O ponto desse conto fora de prumo é outro. É uma mensagem postada por Lula da Silva em sua conta no twitter no dia 27 desse mês.

Disse ele: “No Brasil sempre tivemos uma boa relação com os tucanos, era uma relação civilizada e respeitosa. Agora o Bolsonaro com seus milicianos só sabe estimular o ódio. Esse clima está sendo cultivado desde junho de 2013”.

Bah! Que mensagem bacana essa. Sim, a relação entre o referido senhor e o tucanato era extremamente respeitosa; ele insultava-os de tudo que é nome – inclusive dos tradicionais insultos esquerdistas como nazista, racista, machista e tutti quanti – e as aves bicudas respondiam, frequentemente, de forma moderada e com muita sofisticação. Bolsonaro não. Ele é xucro mesmo, responde na lata e sem papas na língua, e que a verdade seja dita senhor Da Silva: vossuncê não estava acostumado com um adversário desse naipe, que tivesse tal ousadia. Creio que poucos imaginavam algo assim, da mesma forma que imagino que muitos ansiavam algo nesse molde.

Gracejos a parte, essa mensagem é muito interessante porque ela sinaliza claramente qual era o jogo político que foi armado por Lula e seus asseclas em parceria com FHC e seus parças. Um jogo de cartas marcadas, simples e sofisticado, onde um único espectro político (o marxista em suas várias tonalidades) passou a ter o monopólio das narrativas no tabuleiro das disputas partidárias.

Desde os anos 90 do século passado praticamente todas as disputas presidenciais eram polarizadas pelos dois grandes partidos da esquerda brasileira: o PSDB (a direita da esquerda) e o PT (a esquerda da esquerda).

Aliás, sobre isso, noutra ocasião – na eleição em que Luiz Inácio foi eleito presidente – o mesmo havia dito que ele e José Serra haviam inaugurado uma nova forma de fazer política no Brasil, tendo em vista que todos os candidatos à presidência eram de algum espectro esquerdista.

FHC, por sua deixa, quando Lula assumiu a chefia da nação, havia dito ao seu velho amigo que agora seria ele que iria assumir a comando do atraso, referindo-se aos políticos fisiológicos que infectavam e infectam o nosso triste país até os dias de hoje; políticos cuja carreira consiste em apenas tirar vantagens de tudo em nome do povo, mas, é claro, sempre em favor de si e dos seus apaniguados.

Essa fala de FHC reflete de forma cristalina a consciência que ambos tinham e têm de seus papéis nesse jogo.

Podemos recuar um pouco mais no tempo. Há um livro do Lula – isso mesmo, do Lula – de 1981 com uma coletânea de discursos e entrevistas do homem onde, numa entrevista, lhe é perguntado sobre o novo partido que ele estava organizando (o PT, no caso), e quais seriam as pessoas que estavam ajudando-o a fazer isso e aí, ele respondeu: “Fernando Henrique Cardoso, Chico de Oliveira, Jarbas Vasconcelos… Tem várias pessoas”.

Sim, são apenas pontuações que estou fazendo, mas se o amigo leitor procurar ligar os pontos encontrará mais elementos de convergência do que de divergência nesse pontilhado.

E tem outra: lembremos que aquele que planeja uma ação em médio e longo prazo acaba sempre instrumentalizando aqueles que apenas pensam e agem em curto prazo. É inegável que o esquema petista-tucano em nível Federal, com seus inúmeros braços auxiliares tiveram até aqui uma eficácia considerável e, em termos estratégicos, invejável.

Vejam só, até pouco tempo atrás as disputas nas grandes arenas eram entre eles. Pareciam galos numa rinha, mas eram apenas gêmeos siameses disputando a posição junto aos úberes estatais.

Lembro-me também duma matéria sobre Lula, que saiu num jornal anarquista chamado “O inimigo do Rei”, na segunda edição de 1978 (pois é, eu leio essas coisas); matéria essa onde se elogiava a atuação dele junto aos sindicatos da época, mas que questionava os rumos que ele poderia acabar tomando. Pois é, ele tomou. Feliz ou infelizmente, os anarquistas geralmente são muito lúcidos em suas avaliações sobre as movimentações marxistas.

Bem, aí apareceu um tal de Bolsonaro que resolvem acabar com a brincadeira da canhota. Sim, a peleja que está sendo travada por ele é bem desproporcional, mas ele está lá – ciente ou não, preparado ou não – estragando o combinado de décadas.

Não é à toa que tantas forças até então [aparentemente] antagônicas estão hoje de mãos dadas contra o bode que foi colocado na sala presidencial.

Isso não significa, necessariamente, que o atual presidente é um governante excepcional. Não. Significa apenas que ele é uma baita pedra no sapato de um monte de gente que não vale um vintém furado e isso, pra ser franco, já me parece ser algo bem macanudo.

E isso quer dizer que ele conseguirá terminar o seu mandato? Não sei dizer. O tempo dirá. Mas, penso eu que hoje está mais do que claro porque muitos não queriam que ele nem mesmo concorresse à presidência do Brasil em 2018. Quer dizer, para mim parece muito claro.

E, enquanto isso, eu e meu cachorro vamos envelhecendo, perdendo as presas e branqueando os pelos; ele sem largar do seu osso e eu, sem abrir mão da minha xícara de café, vendo a caravana da história passar com seus carroções cheios de tretas, esperanças e lamentações.

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela, em 30 de maio de 2020, dia de Santo Joana D’Arc.

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