Porque a benção de uma Tupinqiua sem musaranhos é o seu mal

Prof. Dr. Manuel Moreira da Silva

Departamento de Filosofia, UNICENTRO

O sexto dia da criação já estava em seus últimos segundos, o nobre Senhor havia recém-criado Tupinqiua. Não o esplendor de roedores, repteis e aves de rapina que ora infestam essa terra outrora abençoada, onde se plantando tudo dava; mas, antes, o que viria ser a belíssima e plácida Pindorama, altiva Terra de Palmeiras. O Soberano não quisera deformar sua Obra Prima e assim interditara a entrada do musaranho – matador maldito, ou antes amaldiçoado –  em lugar tão sagrado.

Não se sabe se essa é a versão verdadeira ou se o Todo-poderoso estava mesmo era querendo descansar. Oh, ingênuo leitor, ingênua leitora, Deus também padece desse pecado capital: a famigerada preguiça, ou, para os doutos, a veneranda acídia. O Eterno não quis dar-se ao trabalho de um novo plano para mais um território a ser dominado pelo Cavaleiro das Trevas; fez uso de sua omnipotência: preferiu descansar. Assim expulsou musaranhos e todos que se aparentam a esses “bem-feitores” do mundo animal.

Com ou sem veneno, todos fazem hastear a bandeira do perigo vermelho; não há lugar para tal em paragens tão paradisíacas. O paraíso natural tornou-se, porém, paraíso institucional: a estalar de dedos uma nova lei é promulgada; se inconstitucional, uma nova constituição toma o lugar de outra, se não uma PEC resolve o caso. Inconstitucionalidades se acumulam, até que, como no caso do último floco de neve para uma avalanche ou de um último rejeito para o estouro de uma barragem e a destruição de um novo Bento Rodrigues, um rompimento institucional se instaura.

Ao impedir que o musaranho colonizasse o que futuramente seriam as florestas de Pindorama, o Senhor Deus como que deu carta branca (ainda que milênios adiante) para a invasão do Congresso Nacional de Tupinqiua pelos grupos evangélicos de ampla observância (exceto a da Bíblia), assim como para toda uma flora e fauna que, se em regime natural representa algo positivo para a natureza e a sociedade, em regime político e social se mostra pior que o assim chamado mal radical. Eis o mal que nos acompanha desde as nossas mais tenras raízes.

Destruidora de instituições as mais confiáveis, a prole de roedores, repteis e aves de rapina que ora domina a outrora Terra de Palmeiras parece intocável. Não se mostra vulnerável a nada, exceto a outras pragas do mesmo tipo; quer dizer, a indivíduos da mesma espécie: são todos predadores, no caso, da Coisa pública. Agem como se não tivessem seus próprios predadores. Oh, quanta falta faz um musaranho!

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