M.Selva
X. Um caso de akronia III. O objeto singular e o transfinito
Em termos humanos, mais precisamente do humanos viventes na Terra quando de sua estadia, o antipodiano passou míseras horas na Austrália e na Nova Zelândia. Digamos, ainda em termos humanos, que a maior parte do tempo que ele passou na Oceania foi com Anderson e Place, com cada qual em suas respectivas cidades, respectivamente Sidney e Adelaide.
Do ponto de vista dele, porém, o antipodiano manteve uma quantidade suficiente de identificações iterativas ou de iteratividade de interconecções, essas que não seriam senão identidade iterativa da interação repetitiva e dinâmica dos quanta e, sem dúvida, pelo menos para nós, da interação sem qualidade e sem reflexão própria do indeterminado quântico, isto é, do real da indeterminação quântica. Essa que, de certo modo, se mostra como o elemento constitutivo fundamental do ser-aí do antipodiano e de sua compreensão de seu entorno, em outros termos, do que seria, para nós, o seu mundo.
Um mundo que, para nós, humanos, estaria entre os caostico e o caótico, já que, para o próprio antipodiano, por exemplo, em sua visão em mosaico, cada uma das tesselas deste, em sendo tocada – ou antes atualizada – abre um novo mosaico. Este, por sua vez, embora, ao que parece, esteja contido naquele da tessela tocada, no qual ela está ao lado de outras, nada tem a ver com aquele no que diz respeito à constituição de uma visão de conjunto, integrada, do todo ou da totalidade em cada caso em questão.
Foi exatamente isso o que aconteceu durante a estadia do nosso ilustre visitante na Austrália e na Nova Zelândia; o que nos permite hipotetizar algo semelhante em relação à sua chegada na Terra e ao grau de certeza praticamente absoluta que ele parecia possuir sobre cada frase do texto de Rorty em torno do que este designava ‘antipodiano’. O fato é que cada tessela de um mosaico atual – isto é, no qual ou diante do qual o antipodiano está – se constitui como uma porta de entrada ou uma passagem para um outro mosaico (que assim representaria um tempo, um mundo ou um evento) completamente distinto daquele da tessela que ele tocara. Isso de tal modo que, se de fato cada mosaico exprime o conjunto de alternativas de um mesmo acontecimento e o de suas consequências – aí incluso o de suas causas –, pode-se dizer que, na verdade, cada tessela representa uma toca de coelho temporal.
Caso em que, para o nosso antipodiano, à diferença do coelho perseguido por Alice, o problema principal é que ele não possui e nem sabe da existência do relógio que o permite adentrar ou sair das mais diversos mundos, tempos e acontecimentos nos quais, de um modo ou de outro, ele se vê impelido a tocar. Para entender melhor essa situação para lá de caostica, reconsideremos os acontecimentos que tiveram lugar na estadia do antipodiano na Terra até aqui.
Todas, todos e todes concordariam que ele emergiu do nada, como um K-Pax, de certo modo sabendo o que estava fazendo, mas sem nenhuma consciência do que estava acontecendo. É possível que, na realidade ou no tempo alternativos em que ele estava – melhor, no mosaico diante do qual ele tocara a tessela correspondente ao estado de coisas encontrado aqui no momento imediato de sua chegada (ou que nós, terráqueos, poderíamos assim interpretar).
Disso se depreende que ele possa estar em busca de seus iguais; o que explicaria sua imensa alegria ao descobrir aqui seus possíveis iguais, assim como seu maravilhamento com o relato de Rorty (para nós ficcional) e a existência de movimentos antipodianos, por exemplo, na Austrália e na Nova Zelândia. Isso também explicaria sua frustração e decepção diante do que ele encontrou nesses dois países ou, antes, do que ele não encontrou – a saber, antipodianos propriamente ditos (mesmo no sentido Rorty, de um antipodiano autóctone). Por exemplo, sua maior decepção com Anderson e Place consistiu no fato principal de estes não serem em verdade australianos, mas, respectivamente, um escocês e um inglês.
O antipodiano descobriu esses fatos ao tocar em alguma das tesselas referentes aos acontecimentos de vida de tais autores, descobertas para ele bastante vívidas pelo fato de que – a cada toque, em tal ou tal tessela –, ele se transporta para o momento exato do acontecimento literalmente em tela, por sua vez visualizado na tessela correspondente. Em vista disso, tudo se passa como se ele estive indo cada vez mais fundo na toca do coelho, entrando em tuneis que o levam a lugares a cada vez mais e mais diferentes daquele que ele originalmente procurava; quando, ao invés de um trabalho de interiorização da experiência assim desenvolvida, o que se tem é uma exteriorização mais e mais fragmentária, a qual torna quase impossível qualquer visão de conjunto do processo como um todo.
Trata-se, pois, de uma espécie de um labirinto ou mais propriamente um dédalo temporal, cujas múltiplas entradas e saídas, assim como seus múltiplos caminhos internos – tal como a passagem de uma linha temporal a outra ou de um acontecimento de uma certa linha numa direção x a um outro acontecimento dessa mesma linha ou de outra numa direção y, nos limites da terceira dimensão do tempo – intensificam a perda de referência e de identidade de quem se vê submetido a uma realidade assim irrepresentada.
Uma realidade, enfim, sobre-indeterminada porquanto, nela, o todo percebido (o mosaico atual) não é senão uma ilusão; isso porque não se pode percorrer todas as suas possibilidades em uma e mesma experiência a não ser de modo pura e simplesmente exterior. O que se explica pelo fato de o toque em uma determinada tessela – isto é, o ato primeiro de uma experiência com a realidade ou o mosaico em questão – leva o experimentador a uma nova realidade ou a um novo mosaico temporal que, embora pareça estar contido no anterior, se mostra pura e simplesmente paralelo a ele. Situação em que, na verdade, o conjunto do processo em cada caso em jogo não é senão um mosaico de mosaicos temporais, dos quais, ao que parece, o antipodiano não tem nenhuma consciência.
Como os seres humanos – com os quais o antipodiano interagiu em sua visita à Austrália e à Nova Zelândia – não tinham nenhuma percepção dessa realidade temporal multifacetada, eles também não estavam em condições de sustentar a existência do fato em questão.
Tudo pode ter se passado para eles como uma pura e simples alucinação ou talvez um delírio, a não ser que fosse o próprio antipodiano quem estivesse em delírio ou alucinação; isso sobretudo em razão de ele ter falado com os presumidos antipodianos terrestres, o que só seria possível se eles – em especial Anderson e Place – estivessem em uma mesma tessela ou se fosse possível ao antipodiano “entrar” numa tessela x e “sair” por ela própria para, assim, entrar em outra.
Diante disso, algumas situações descritas nos capítulos anteriores parecem começar a fazer sentido, enquanto outras, no entanto, parecem tornar-se ainda mais obscuras; por exemplo, o fato de o antipodiano tomar o acontecimento da expedição terráquea ao seu planeta – considerando que, de fato, a Antipodeia de Rorty seja este planeta – como um evento incontestável. Situação análoga é o fato de, segundo Rorty, tal expedição ter se realizado na “metade do século XXI” e isso não ter sido minimamente levado em consideração pelo antipodiano, o qual, a exemplo da lagartixa de Maturana e Varela – cuja atenção está voltada apenas para a alimentação, procriação e proteção –, só tem olhos para certos acontecimentos e não para outros.
No caso do antipodiano, a atenção se concentrara nos filósofos participantes da missão; os quais, por isso, em nela estando presentes e pousando no planeta, o batizaram como Antipodeia em homenagem à corrente filosófica dos antipodianos terráqueos. Considerando que o antipodiano percebe o tempo sob a forma de um mosaico, no qual aparecem todas as linhas temporais possíveis e acontecimentos alternativos, pode ser que a ficção rortyana tenha aparecido a ele como um desses acontecimentos alternativos para algo que ele então buscava. O que precipitou seu aparecimento na Terra em um momento histórico praticamente contemporâneo ao tempo de vida de Rorty, isto é, ao elemento de fato e de direito real na tessela temporal então investigada por nosso ilustre visitante.
Imaginemos o antipodiano diante de um mosaico temporal no qual aparecem todas as alternativas possíveis dos visitantes que deram nome ao seu planeta e, portanto, aos habitantes deste. O antipodiano toca então na tessela correspondente à visita dos terráqueos e, em um átimo, aparece na Terra, precisamente na época em que Rorty – nascido em 4 de outubro de 1931 em Nova Iorque e falecido em 8 de junho de 2007, em Palo Alto, Califórnia – escrevera A filosofia e o espelho da natureza e em que esse livro ganhara traduções e ficara conhecido em praticamente todo o planeta Terra.
Essa também a época que pode ser dita contemporânea do evento da expedição, tal como narrada na ficção levada a termo pelo filósofo, quer dizer, a metade do século XXI; algo para nós – ou pelo menos para alguns dentre nós, os terráqueos do século XXI – completamente absurdo, mas não para o antipodiano em seu modo peculiar de transitar pelas diferentes tesselas temporais e pelos mais diversos acontecimentos paralelos e, por conseguinte, alternativos. Isso também explica o fato de, tão logo haver chegado à Terra, o antipodiano deparar-se com uma edição de A filosofia e o espelho da natureza, assim como de ater-se justamente à passagem em que Rorty fala da expedição dos terráqueos à Antipodeia.
O trecho referente à expedição e à nomeação do planeta e de seus habitantes era algo que existia e que portanto era real; o que o tornava apto a um lugar no mosaico temporal do antipodiano, embora o conteúdo da narrativa – do ponto de vista de seu autor e de seus leitores terráqueos, assim como, ao que parece, do ponto de vista do próprio real multidimensional – nada tivesse de propriamente real, no sentido de algo que ex-siste ou que permanece fora do observador. Em vista disso, porém, tudo indica que quem vive na terceira dimensão do tempo não o percebe como tal e, por isso, também não é capaz de – em o intuindo – perceber-se a si mesmo no tempo e como tempo; essa percepção implicaria um processo de interiorização tal como aquele narrado por Agostinho de Hipona nos limites da primeira dimensão de tempo.
Mas por que o antipodiano tocou precisamente naquela tessela? Podemos imaginar que ele estivesse em busca de suas origens; o que pressuporia uma certa dimensão interior nele – mas isso seria algo humano, demasiado humano para um indivíduo ou antes uma entidade desprovida de tempo ou de Si mesmo. Mas por que não imaginar uma ex-sistência sem tempo diante de múltiplos espelhos, cada um lhe apresentando a possibilidade de reconhecimento daquilo que, de um modo ou de outro, ele sabe – ainda que não saiba que sabe?
O problema disso é que, para o antipodiano, cada espelho (ou cada tessela de cada mosaico) se mostra um objeto singular, transfinito, do qual nenhuma passagem para outro é possível no sentido de uma linha contínua, progressiva ou regressiva. Diante disso, cada objeto e cada acontecimento se mostra infinito em si mesmo e, portanto, ex-siste ao lado de todos os outros objetos e acontecimentos possíveis como que em um imenso espelho de espelhos, cada um se mostrando sem fim, mas como que se bastando a si mesmo; situação que torna impossível todo e qualquer reconhecimento, assim como todo e qualquer conhecimento verdadeiro que possa distinguir-se de um conhecimento falso. Se isso é assim, é-nos lícito pensar o antipodiano como um ser solitário, incapaz de fazer laço ou mesmo de querer fazer laço, mas que, porém, obcecado pelo espelho, termina por dissolver-se nele; quer dizer, ao tocar em uma e não em outra tessela, o antipodiano é levado a uma determinada configuração temporal e desta a outra e outra, ao infinito.
O que o destitui de qualquer possibilidade de conhecimento real e de reconhecimento do Si mesmo e do Outro implicados em tal ou tal possibilidade de laço; esse que pressuporia pelo menos uma certa disposição para voltar-se para si e que exigiria distanciar-se do espelho e não se fundir nele ou com ele. Algo talvez impossível para o antipodiano, cujo fazer é sempre determinado pelo modo de excitação de suas fibras cerebrais em sua descrição a mais objetiva e literal possível e não por uma interpretação na qual se apresente uma determinada posição subjetiva.
Não obstante, se cada espelho ou tessela nesse mosaico de espelhos e tesselas apresenta a possibilidade de reconhecimento disso que, de um modo ou de outro, o antipodiano sabe – ainda que não saiba que sabe – é possível, mesmo ao nível de seu conhecimento pura e simplesmente descritivo, proceder ao reconhecimento do até então meramente descritivo.
Para isso, porém, faz-se necessário saber se, ao tocar nesta ou naquela tessela, o antipodiano assim procedia em função de um objetivo puro e simples, nos limites de sua lógica própria (ver O Antipodiano V. O problema da verdade), ou em razão de uma determinação do antecedente e do consequente de tal ou tal acontecimento; o que significaria o rompimento daquela lógica e a instauração de uma clivagem, em rigor, de uma clivagem temporal. Sabe-se que o antipodiano enviou um exemplar, ou uma cópia, de A filosofia e o espelho da natureza para os seus superiores (ver O Antipodiano II. A descoberta); isso quer dizer que sua lógica é centrada em objetivos, ele cumpre ordens; mas, se isto é assim, onde estão esses superiores, eles ex-sistem mesmo ou não passam de uma espécie de programa ou protocolo ínsito no funcionamento antipodiano? Se ex-siste nele algo para além disso, como explicar sua obsessão em tautologias e os tilts ou quase tilts quando de certa frustração ou decepção?
Mesmo que o antipodiano se reporte a superiores, é possível que ele nunca tenha estado realmente em pessoa diante destes. O que pode ser o caso devido à sua própria natureza e à natureza dos demais antipodianos; situação em que, dadas as suas características até aqui emersas, é possível que cada espelho ou tessela do mosaico, ou dos mosaicos, em causa se mostre de uma maneira diferente a cada antipodiano.
Isso, de modo que, em rigor, eles não compartilhem de fato a mesma realidade percebida individualmente, mas sejam indiferentes aos elementos que a diferenciam de um para o outro em sua percepção, permanecendo assim presos às tautologias e à confirmação e realização de objetivos. Um exemplo disso e sua distinção radical em relação à experiência humana é justamente a frustração do antipodiano quando ele se deparou com as respectivas posições de Anderson e de Place em torno da proposição “tudo o que existe é real” e da chamada teoria da identidade de tipo, que postula a identidade de tipos de estados mentais a tipos de estados cerebrais ou físicos e, portanto, sua correspondência direta entre si.
Enfim, o antipodiano não tolera a alteridade porquanto ela frustra justamente os objetivos que a ele se impõem realizar; mas isso não seria porque, em sua fragmentação temporal, ele não seria a alteridade a mais absoluta?
Neste sentido, a partir de sua investigação “empírica” nas mais diversas tesselas, para além das teorias dos antipodianos da Oceania e de outros defensores da ideia de que as pessoas não possuem mentes, o antipodiano como que fez algumas outras descobertas sobre seres sem mentes na história da Terra, em especial os assim chamados akéfalos ou os sem cabeça.
Assim, a despeito da troça e do mal-entendido com o texto de Rorty ou do modo como o antipodiano veio parar em nosso planeta, seu encontro com os akéfalos parece mudar completamente o destino que ele próprio imaginava estar-lhe reservado em sua estadia na Terra, suas peripécias inconscientes no espelho de espelhos o levou a uma nova descoberta civilizatória. Quais as consequências dessa nova descoberta para a sua busca e que mosaico temporal se lhe formou quando o sem mente se viu frente a frente com os sem cabeça? A que tuneis, a que tempos e a que situações essa toca do coelho temporal ainda pode nos levar?




