M. Selva
- IX.Um caso de akronia II. O problema da existência do tempo
Além das proposições “[(P→(F∧R)]” e “M→D”, discutidas no capítulo anterior, o antipodiano se concentrou igualmente nas proposições “∀d [D(d)→∃x R(x,d)]” e “P→F”. Considerando que esta última é apenas uma simplificação de “[(P→(F∧R)]”, podemos nos abstrair dela. O que não é o caso de “∀d [D(d)→∃x R(x,d)]”, uma proposição central para entendermos algumas das decisões do ilustre visitante.
Reconsideremos a interpretação de “∀d [D(d)→∃x R(x,d)]” em linguagem natural, humana: Para toda disciplina d, se d é uma disciplina estudada pela expedição (D(d)), então existe pelo menos um indivíduo x que representa essa disciplina na expedição (∃x R(x,d)). Em outras palavras: Para cada disciplina que faz parte do programa da expedição, há pelo menos um representante dessa disciplina entre os membros da expedição.
Levando-se em conta que essa proposição formal – na forma do cálculo de predicados – formaliza tão somente os primeiros períodos do texto de Rorty, duas situações saltam aos olhos, pelos menos daqueles mais experimentados com certas questões humanas. Mas retomemos antes o próprio texto de Rorty, em A filosofia e o espelho da natureza, Relume Dumará, 1994, p. 83: “Na metade do século XXI, uma expedição da Terra pousou nesse planeta. A expedição incluía filósofos, assim como representantes de cada uma das outras disciplinas estudadas.”. Investiguemos mais profundamente essas proposições.
Em sua tradução lógico-formal, o antipodiano desconsidera a expressão “na metade do século XXI”, marcador temporal essencial para qualquer interpretação adequada no marco da primeira dimensão cosmológica do tempo. Não obstante, o ilustre visitante toma como verdadeira sem mais a proposição “uma expedição da Terra pousou nesse planeta”; portanto, ele toma como verdadeiro, sem mais, o fato de que uma expedição da Terra pousou em seu planeta.
Em sua tradução, ele leva em conta apenas o fato de que a expedição incluía filósofos, representantes da filosofia, e representantes de outras disciplinas. É evidente que para aqueles cuja experiência do tempo se dá numa dimensão linear, não faz nenhum sentido alguém desconsiderar um marcador temporal e assumir como fato fundamental e sem contradições algo que pode nunca haver ocorrido. Ou será que ocorreu, pelo menos para o antipodiano e para os nativos de seu planeta?
Até onde sabemos, ao escrever A filosofia e o espelho da natureza, Rorty pretendia levar a termo uma crítica radical da epistemologia tradicional, em especial a tese da mente como um espelho da natureza ou do mundo, enunciada entre outros por Giordano Bruno. Por isso, e para deixar seu argumento ainda mais evidente, Rorty inventa a figura do antipodiano – calcada no exemplo dos filósofos australianos e neozelandeses de meados do século XX, por esse motivo chamados assim e porque tais filósofos, em sua maioria, defendiam a tese de um realismo externo –, jogando, de certo modo, a última pá de cal na concepção cartesiana da separação real entre a alma e o corpo do ser humano; porém, resolvendo a disputa com a dissolução completa de um lado interior ou de um mundo interno e mantendo apenas o lado exterior e o mundo externo.
Rorty publicou A filosofia e o espelho da natureza precisamente no ano terrestre de 1979 e, na seção sobre o antipodiano, ele desenvolve a ficção de uma expedição que pousa em Antipodeia “na metade do século XXI”. Sem compreender a noção do tempo terrestre e, ao que tudo indica, ex-sistindo primariamente sob a força da gravidade quântica em uma certa região do espaço, na qual – conforme o experienciamos – o tempo permanece ausente, o antipodiano dispensa aquelas variáveis temporais, inclusa a noção de contingência para determinar a verdade de um fato, isto é, de uma ocorrência, de um evento ou de um objeto. Este se mostra a ele como fenômeno natural cujas variáveis físicas A, B, C… (oscilações, pulsações, curso etc.) podem ser medidas unicamente a partir de certas funções A(B), B(C), C(A) etc. Isso sem nenhuma representação do tempo e, portanto, do Si mesmo, que, entre os terráqueos, nasce ao se autointuir no tempo e como tempo.
Nessa perspectiva, na medida em que para o antipodiano o tempo inexiste, não faz sentido para ele nenhuma consideração dessa variável. O problema é que, também para o antipodiano, “tudo o que existe é real” e “tudo o que é real é tautologia”; caso em que, para ele: tudo o que existe é o que é exterior ou o que permanece fora. Da mesma forma, ainda para o antipodiano, tudo o que é real se resolve na identidade iterativa dos quanta – isto é, das unidades fundamentais que se conectam como uma rede ou como o tecido cósmico –, os quais, em sua interação repetitiva e dinâmica, conformam o espaço cosmológico; razão pela qual a tautologia se mostra como o resultado último da identidade iterativa da interação repetitiva e dinâmica dos quanta.
Disso se depreende que, aquilo que para nós se apresenta como o contínuo suave e infinitamente divisível do espaço-tempo, o antipodiano apreende como tão somente iteratividade de pequenas unidades interconectadas. Talvez isso explique o que, em termos humanos, poderíamos designar como a sua compulsão à tautologia, que seria por sua vez a tentativa desesperada de conter a diferença e, com isso, a contingência e a contradição.
Isso explica a proposição “∀d [D(d)→∃x R(x,d)]”, mas ainda não esclarece o fato de a ficção de Rorty mostrar-se uma verdade para o antipodiano. Por que estaria ele tão obcecado pela verdade da existência de pelo menos um representante de pelo menos uma disciplina na expedição terráquea que teria pousado em seu planeta na metade do século XXI no calendário referente ao tempo tal como experienciado pelo humanos? Pelo que foi possível averiguar até agora, o antipodiano aparece na Terra sem mais e, de imediato, se apossa justamente do texto de Rorty, tomando-o como uma espécie de prova de que os antipodianos descendiam dos antipodianos terráqueos descritos por Rorty como os inspiradores da nomeação de seu planeta como Antipodeia e, assim, de seus habitantes como os antipodianos.
Ao fim e ao termo, a única conclusão possível a que se pode chegar, é a de que tudo isso não passa senão de um nonsense ou de uma brincadeira de mal gosto de quem não tem o que fazer. Isso, a não ser que, se pensado a partir das categorias humanas, o antipodiano venha na verdade de um futuro no qual o tempo não é mais vivenciado tal como o experienciamos hoje; quando, em suma, o tempo linear é atravessado pelas outras dimensões do tempo de modo que, para quem esteja nos limites destas, aquele desapareça ou seja imperceptível como tal.
Isso impossibilitaria qualquer interação relevante entre indivíduos ou entidades intertemporais, assim como rechaçaria – por sua incompatibilidade – as premissas fundamentais, e geralmente aceitas pela maioria dos filósofos terráqueos, relativas à necessidade do passado e da contingência do futuro. Eis aí, pois, um caso de uma renovação improvável da assim chamada aporia de Diodoro, reportada na antiguidade por Epicteto e estudada a fundo, no século XX, por Jules Vuillemin.
Em Nécessité ou contingence, l’aporie de Diodore et les systèmes philosophiques [Necessidade ou contingência, a aporia de Diodore e os sistemas filosóficos], Les Éditions de Minuit, 1984, p. 7-8, Vuillemin indica tais premissas incompatíveis e suas tentativas de solução:
- O passado é irrevogável;
- Do impossível ao possível, a consequência não é boa;
- Há possíveis que nunca se realizam jamais;
- (Princípio de necessidade condicional). O que é não pode não ser enquanto é.
Quanto aos filósofos mencionados por Epicteto:
[…]. Diodoro ele mesmo nega a validade de C; ela não salva a contingência senão em identificando-a com a indeterminação do momento em que produziria o evento futuro. A solução de Crisipo põe em questão a premissa B; ela não evita o fatalismo mais que ao preço de argúcias lógicas relativas ao comportamento específico dos enunciados cujo sujeito é um pronome demonstrativo (este). Por fim, com Cleantes, coloca-se em dúvida a ‘necessidade’ do passado (premissa A) em se fundando sobre o eterno retorno. […].
Quanto às filosofias não mencionadas por Epicteto:
[…]. Ou bem elas sacrificam o princípio de necessidade condicional [premissa NC, Platão], ou bem elas distinguem entre muitos tipos de necessidade e invalidam um dos princípios fundamentais da lógica: princípio da bivalência do verdadeiro e do falso (Aristóteles), princípio do terceiro excluído (Epicuro), princípio de correspondência do verdadeiro e do real (Carnéades)
À primeira vista, o antipodiano parece negar todas as quatro premissas acima citadas. Em primeiro lugar, ele nega que o passado seja irrevogável; pois cada um de seus tilts inicia uma nova ordem de realidade sem nenhum traço da anterior, à exceção das chamadas memórias fantasmas, que ainda não sabemos o que são. Ele não só coloca em dúvida a necessidade do passado, como também desarticula a sequência antes e depois, ou antecedente e consequente, dos acontecimentos tal como experienciados pelos humanos.
Ao invés de postos um depois do outro, os acontecimentos são postos um ao lado do outro, são pura e simplesmente adjacentes; não há, portanto, algo como o eterno retorno – resquício do tempo circular ou cíclico –, mas todos os acontecimentos, para nós passados e futuros, permanecem um ao lado do outro em um eterno presente, como que em um cenário ou em um quadro multifacetado.
Como dito no capítulo anterior (Um caso de akronia I. A experiência impossível), tudo se passa como se o conjunto de todos os acontecimentos, para nós, possíveis e realmente passíveis de acontecer tivessem acontecido em um único e mesmo instante; tudo se passa como que em um mosaico no qual todos os acontecimentos possíveis, resultantes de um primeiro, fossem, com ele, um único e mesmo eterno agora. O que, por sua vez, também revoga uma a uma cada uma das outras premissas.
Devido à sua percepção multifacetada, para o antipodiano praticamente não há o impossível; ao contrário, tudo é possível e ocorre em um eterno presente, não havendo, portanto, nenhum fluxo constante do passado para o futuro ou do futuro para o passado. Quer dizer, não há direção do tempo, donde também não haver entropia (nem aumento da entropia), dado que esta está ligada ao sentido do tempo tal como experimentado pelos humanos.
Donde, ao invés da premissa antiga que afirma “Do impossível ao possível, a consequência não é boa”, o antipodiano extrair exatamente a conclusão contrária ou simplesmente desconsiderar tal premissa enquanto não aplicável. Isso, igualmente, refutaria a premissa C. “Há possíveis que nunca se realizam jamais”; isso porque, para o antipodiano, se tudo é possível, e se não há fluxo constante do passado para o futuro, então todos os possíveis já são no presente, ou seja, existem. Quanto à última premissa, o seu problema é a expressão “enquanto é”, desnecessária do ponto de vista do antipodiano, bastante para ele pura e simplesmente “O que é não pode não ser”.
Enfim, pode-se dizer que o antipodiano não só sacrifica o princípio de necessidade condicional [premissa NC, Platão], mas também invalida o princípio da bivalência do verdadeiro e do falso, assim como o princípio do terceiro excluído, mantendo apenas o princípio de correspondência do verdadeiro e do real.
Isso, contudo, de uma maneira completamente distinta daquela tematizada por Vuilleman; a saber, pelo fato de que, para o antipodiano, o verdadeiro e o real correspondem pura e simplesmente porque: (1) tudo o que é possível existe, (2) tudo o que existe é real, (3) tudo o que é real é verdadeiro e (4) tudo o que é verdadeiro é tautológico.
Pode-se verificar, agora, nesses quatro princípios do antipodiano, o fundamento de seu ajustamento das proposições “[(P→(F∧R)]” e “M→D”, para que “[(P→(F∧R)) ∧ (F→C))] ∧ [(C→M) ∧ ((M→D) ∧ (M→S))]” se tornasse uma tautologia. Mas será que isso se tornou possível realmente, ou não seria apenas mais uma alucinação do antipodiano, independente da realidade em que ele sustenta sua ex-sistência?
Uma coisa é certa, o antipodiano percebe a realidade ou detalhes da realidade que os humanos não percebem; da mesma forma, os humanos também percebem certos detalhes da realidade que o antipodiano jamais perceberá. Por exemplo, em sua percepção [do que seria o tempo para nós] em mosaico, ele pode ter todas as possibilidades de um acontecimento uma ao lado da outra – como que em um conjunto de janelas na tela de um computador – e assim decidir em qual delas permanecer; algo análogo ao que acontece quando nós, os seres humanos, decidimos em qual lugar do espaço queremos ficar ou construir algo.
A diferença é que, para ele, isso que nós experienciamos como o tempo não ex-siste; assim, mais propriamente, não é percebido como um dos elementos constitutivos da realidade e, em consequência, de seu próprio ser. De certo modo, ele transita pelas mais distintas linhas do tempo tal como, na primeira dimensão do tempo, nós, os seres humanos, transitamos pelas mais diferentes vias no espaço; mas, à diferença de nós, ele faz isso sem fio condutor ou repetição de qualquer tipo. Em vista disso, porque lhe falta justamente a descoberta do tempo como tal e a vivência deste, falta ao antipodiano a compreensão de que o espaço percebido é tão somente uma manifestação secundária das dimensões temporais.




