Por Carlos de Jesus Lima*

Levantar cedo num sábado com chuva, sem compromissos? Somente se for pra ir ao mercado. O despertador torna a vida insuportável.

Quando resvala da cama um corpo em busca de suas calças, o cidadão, entre outras pequenas coisas, punha-se a fazer contas para logo em seguida sair de sua casa com uma ideia fixa: “cada compra é uma facada no meu bolso”.

A rua vai mostrando cães, aves e pessoas, mas sem a velha distinção de raça ou de cor. Todos se abrigando da chuva. Cada um a sua própria maneira. Uma espécie encaixotada de abrigar-se ao relento, onde há muito tempo moravam aquelas velhas diferenças nos velhos lugares onde antes só se encontravam tipos conhecidos, onde agora, é o medo de pobre que toma quase tudo de assalto.

Nosso cidadão entre as prateleiras sempre abarrotadas de produtos – na verdade o que mais se tem são marcas, os produtos não são tantos –, consulta à carteira e o bolso reclama, “pão com mortadela não”. O cérebro de prontidão, em relação a sua própria memória, algumas vezes se confunde – dado os anacronismos em meio a tantas lembranças que nestes dias se desconcertam. Cada vez mais parecendo haver certo desejo pela distancia da investigação e da criticidade. É preciso parar e refletir.

Comparando o que dizia um antigo presidente do Brasil: “Política é um misto de sonho e realidade. Quando o sonho é agredido pela realidade, aparece algo que chamamos de crise. Prever tais momentos é um papel fundamental da Constituição – pois só assim poderemos ter esperança de que o sonho sobreviva[i]” (JOSÉ SARNEY); e, na mesma medida, as palavras de outro presidente (o dos EUA), que considerava “muito importante que o gigante do norte e o gigante do sul tenham um bom relacionamento[ii]” (RONALD REAGAN), o cérebro investiga. Assume que nossa democracia nasceu diante de incontáveis interesses de um mercado entre muitos. Alienado do lugar próprio em que as coisas se encontram realmente, esse cérebro sentiria toda dificuldade do mundo pelo desvelar de sua verdadeira condição. Desejando dizer algo de verdadeiro, já não consegue, suas palavras parecem esvaziar-se logo que se lhe escapam da boca.

Depois de refletir bastante, talvez fosse hora de analisar uma língua diferente “BRASILIEN ÜBER ALLES”, mas o bolso logo completa “Deus acima de tudo”, suavizando todo momento para não alimentar uma duvida intratável[iii].

*graduado em Filosofia e Ciências Sociais – E-mail: [email protected] – buscando por um pouco de razão que salvaguardada do instrumental possa ainda permanecer implicada com os devaneios de nossa época.


[i] Entrevistado por J.R. Guzzo e Elio Gaspari em 12 de Novembro de 1986, José Sarney falava: “Conseguimos, com uma grande obra de engenharia política, instituir no Brasil um regime civil. Mas é necessário andar muito mais do que já andamos até agora para que nossas conquistas não sejam algo passageiro”.

[ii] Em 8 de outubro de 1986, o então presidente dos EUA, Ronald Regan (entrevistado por Flávia Secles), relata que: “Vale a pena lembrar que Espanha, Portugal, Brasil, Equador, Peru, Argentina, Uruguai, El Salvador, Honduras e Guatemala são hoje democracias e todos fizeram sua transição a partir de regimes de direita” – essa situação, nas palavras dele, denotaria que a direita é mais tolerante do que a esquerda. Assim, era possível chamar Daniel Ortega, presidente da Nicarágua, como “ditadorzinho”, e, ao mesmo tempo afirmar “O general Pinochet é o presidente do Chile e é assim que o qualificamos”.

[iii] Rotula-se o diferente afim de que se reconheça nele a causa de um mal a ser extirpado em todas as suas manifestações. Tendo isso claro, para tal maneira de ver as coisas, o grande mal aparece no próprio exercício de se fazer pensar – “a ignorância é uma benção” (CYPHER – in: MATRIX, 1999).

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