Um dos primeiros livros de filosofia política que li na minha porca vida foi “O discurso da servidão voluntária”. Faz tempo que li esse trem bão pra lá de metro e, ainda hoje, lembro-me claramente do ponto central que foi-me atirado nas ventas por Etienne de La Boétie.

Dizia ele que era mais do que compreensível que uma pessoa quisesse ter o poder em suas mãos e, também, almejasse se tornar um tirano; o que se torna difícil de entender, segundo o autor, é porque milhares queiram ser súditos de um déspota.

Sim, é difícil de entender, mas não impossível. G. Jellinek, em seu livro “Teoria General del Estado”, de maneira muito simples e direta, nos chama a atenção para o fato de que todos nós, seres humaninhos, obedecemos, em maior ou menor grau, a alguma autoridade; porém, o fazemos dentro de determinadas condições, motivados por circunstâncias variáveis e dentro de certos pressupostos históricos, psicológicos e socioculturais.

Neste sentido, seria praticamente impossível compreendermos o fenômeno político, com suas razões e desrazões, se não nos empenharmos em examinar as ideias que inspiram os indivíduos envolvidos, direta e indiretamente, na luta pelo poder. Apenas pode-se compreender o jogo político, em torno das sinecuras e cadeiras estatais, e de qualquer tipo de organização, quando levamos em consideração os objetivos que os indivíduos envolvidos, quando perscrutamos o que eles buscam junto duma organização, seja ela qual for.

Tendo isso em vista, penso também que seria interessante termos em mãos alguns critérios para avaliarmos essas ideias que movem os indivíduos a atuarem politicamente. J. O. de Meira Penna, em seu livro “Ideologia do século XX”, ensina-nos que quando o assunto são as organizações políticas, temos que ter em conta a ideologia que essa organização advoga, o discurso que ela apresenta ao público, as discussões e deliberações internas e as relações, contatos e acordos que são mantidos pela dita cuja com outras entidades, organizações e sujeitos avulsos.

Se, de fato, levarmos em consideração todas essas questões e questiúnculas, iremos constatar, mais do que depressa, que o fenômeno político não é tão simples quanto muitos querem fazer crer com suas palavras de ordem e jargões partidários.

Não apenas isso. Como, mais uma vez, nos lembra G. Jellinek, na maioria absoluta das vezes as finalidades indicadas pelas ideias, ideais e ideologias políticas jamais irão se realizar completamente. Seria da natureza dos projetos políticos, em certa medida e proporção, fracassarem, devido à volatilidade dos jogos de poder e dos fatores instáveis que fazem parte desses paranauês.

E assim o é, porque, como nos ensina, A. D. Lindsay, em seu livro “O Estado democrático Moderno”, não podemos nos esquecer que os partidos políticos, os Estados e tutti quanti, são o que são na medida em que as pessoas – que neles vivem ou parasitam – cultivam um determinado tipo de relação entre si e com eles – Estados e partidos.

E tem outra: na maioria das vezes, uma associação de indivíduos, não é exatamente o que supomos que ela seja.

E tem mais uma: frequentemente há uma grande dificuldade para diferenciarmos o que elas de fato são daquilo que supomos que elas sejam, devido as nossas próprias ideias, ideais, ideologias e demais pré-conceitos que cultivamos com tanto amor e carinho.

Obviedade das obviedades, toda a confusão deste mundo e da nossa cabeça, reside no desdém que cultivamos pela compreensão das tais obviedades.

Explico-me doutro modo: se desejamos compreender, com relativa clareza, as movimentações dos grupos políticos que estão se digladiando no cenário contemporâneo em nosso triste país, penso que seja de fundamental importância que apliquemos os critérios acima indicados para – se quisermos – analisar todas as organizações e – quem sabe – identificarmos a finalidade almejada por essas tranqueiras e diferenciarmos dos motivos que empolgam os seus membros.

Detalhe importante: identifiquemos em nosso íntimo não apenas as ideias, ideais e ideologias que nos inspiram e os objetivos que nos motivam, mas também, os afetos que nos envolvem e, ao seu modo, acabam se tornando um ponto cego que limita nossa percepção da realidade.

Se não nos dispomos a realizar – com sinceridade – uma impiedosa análise dos elementos que habitam nossa consciência, estaremos fadados a cometer um equívoco atrás do outro porque, como nos ensina Maurice Duverger, em seu livro “Os laranjais do Lago Balaton”, quando procuramos apenas legitimar, a qualquer custo, uma ação política, estaremos, sem querer querendo, construindo uma espécie de religião secular, por estarmos projetando o atributo de infalibilidade a uma ideologia, a um partido, ou a uma pessoa que, ao seu modo, acabam tomando o lugar de Deus, enquanto principio e fim de todas as coisas.

Nesse sentido, por exemplo, o marxismo não difere muito duma “religião”; religião essa que, por sua deixa, não tem salvação alguma para oferecer. Nenhuma.

Enfim, entre as inúmeras crenças e crendices políticas que temos no cardápio contemporâneo, entre as inúmeras agremiações partidárias e movimentos que se apresentam como legítimos representantes do tal do povo – porta-vozes desta ou daquela iguaria ideológica – há um trem fuçado chamado realidade que apenas poderá ser degustada por nós se estivermos dispostos a nos desnudar de nossos ideais.

Isso, por certo, não significa que não poderíamos mais defender nossas convicções nesta arena suja em que são travadas as disputas pelo poder. Não é disso que se trata.

Significa simplesmente que não é recomendável que nos levemos tão a sério assim e, também e principalmente, não encaremos as pelejas desta vida, repleta de miudezas, fazendo uma carranca tão feia, como frequentemente o fazemos, pois, no frigir dos ovos, como nos ensina o Eclesiastes, vaidade das vaidades; tudo neste mundo não passa de vaidade. E põem vaidade nisso.

Escrevinhado em 23 de setembro de 2019,

por Dartagnan da Silva Zanela

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