Todo aquele que, sinceramente, gosta pra caramba de deitar suas vistas nas páginas fatigadas da história, não deve, jamais, prender-se unicamente àquilo que convencionalmente chamamos de “fatos” porque, fazer isso, seria por demais perigoso.

Qualquer um que realmente deseje solver a verdade – que é o tutano da história, como nos ensina o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen – que está subjacente aos fatos, deve se perguntar qual é o significado desses ditos cujos para o desenrolar dos acontecimentos, para os sujeitos históricos envolvidos nas tretas de antanho, para as testemunhas desses furdunço e, também, para os intérpretes desses acontecimentos e, naturalmente, para nós mesmos.

Toda narrativa histórica carrega em suas sinuosas linhas uma multiforme gama de valores; valores esses que, ao seu modo, organizam a percepção que os autores da narrativa querem que tenhamos dos acontecimentos a muito vividos e que, por isso mesmo, não foram nem vividos, nem testemunhados por nós.

Aliás, nós também, quando lemos uma e outra narrativa histórica acabamos, sem querer querendo, organizando as informações que coletamos a partir de uma gama de valores que carregamos em nossa algibeira.

Nesse sentido, como nos ensina o historiador José Honório Rodrigues, todo aquele que realmente for se dedicar ao estudo das linhas da “mestra da vida” deve, de certa forma, ter em mente que seu estudo deve estar focado em articular o que está desarticulado e, quando tudo está concatenado, deve-se indagar sobre os valores que estão dando esse ou aquele sentido aos fatos.

Sendo assim, fica mais do que patente que para nos dedicarmos de forma amorosa e abnegada à procura pela verdade, que se encontra oculta nas tramas do passado, é imprescindível que se compreenda que o caminho a ser percorrido não é uma linha reta, mas sim, um traçado tremendamente sinuoso e acidentado.  É fundamental que tenhamos em mente que a caminhada é longa, cansativa e, muitíssimas vezes, desgastante; porém, gratificante, como toda jornada sincera rumo à construção do conhecimento.

Ou seja, podemos afirmar com relativa tranquilidade que a construção do conhecimento histórico, a respeito de qualquer meandro do passado, seja ele remoto ou recente, se dá na interação dialética entre o que aconteceu com os possíveis significados que são atribuídos ao acontecido que agora habita a arena de nossa consciência individual. E é justamente aí que a porca torce o rabo de vereda.

Digo isso não por maldade, mas por advertência. Não podemos fechar nossos olhos para um traço leviano que se faz presente na alma humana que, muitas vezes, nos leva a termos uma conclusão pronta e definitiva sobre certos assuntos, sem nunca termos, realmente, realizado um estudo serenamente dirigido, tal qual havíamos sugerido nas linhas anteriores. Quem nunca cometeu esse disparate que atire o primeiro pacote de bolacha.

Talvez, alguns bons exemplos do que estamos falando sejam as opiniões desencontradas, disparatadas e, às vezes, maliciosas, que são emitidas sobre a independência do nosso país, a proclamação da república no Brasil e o golpe [ou contragolpe] de 1964. Esse último, só de mencioná-lo, já gera um revertério daqueles nas vísceras de muitos.

Mas vamos diretamente ao ponto desse conto: se voltarmos nossos olhos para o quartinho escuro de nossa memória, através da janela entreaberta de nossa consciência, para darmos uma espiada naquilo que realmente sabemos a respeito desses acontecimentos, bem provavelmente, teremos uma resposta cabal, definitiva, a respeito dos três, especialmente com relação ao último. Porém, se formos inquirir sobre as fontes que nós realmente deitamos nossas vistas para chegarmos a essa ou aquela conclusão, veremos, com vergonha, se a tivermos e formos sinceros, que possivelmente o nosso conhecimento restringe-se a meia dúzia de lugares-comuns colegiais que são repetidos sem parar, aqui e acolá.

Como nos ensina o historiador venezuelano José Luis Solcedo-Bastardo, em nós, muitas vezes, é preponderante um forte subjetivismo que nos leva comumente a buscar apenas aquilo que serve para confirmar nossos preconceitos, que afetuosamente chamamos de convicções, silenciando tudo o que, porventura, possa se opor a imagem prévia que temos em nossa mente sobre o acontecimento ou personagem histórico que esteja no centro de nossa atenção.

Deixemos o trem mais simples: se formos tomar o fatídico movimento civil/militar de 1964, veremos que, para alguns, foi apenas um golpe protofascista contra a democracia e, para outros, tão somente um contragolpe revolucionário para salvar a democracia da ameaça comunista.

Obviamente que estou simplificando a encrenca, mas é essa forma simplificada que muitas vezes se projeta sobre este acontecimento histórico – sobre praticamente todas as tretas historiográficas – e, com base nessa superficialidade, se sustenta aquela pose pomposa, com ou sem filtro de rede social, para mandar os outros irem estudar a tal da história.

No fundo, bem no fundo, o que tanto a galera que está à direita, como à esquerda, querem dizer quando estão mandando o outro estudar história, principalmente, quando o assunto são os acontecimentos desse ano fatídico, 1964, seria apenas que sua narrativa lhes parece mais verossímil que a do outro e que, só por isso, deveria ser aceita de forma inconteste como sendo a verdade.

Detalhe importante: em termos históricos, a mera verossimilhança, seria apenas um discurso legitimador para uma ação presente, não o produto de uma busca sincera pela compreensão dialética da trajetória historicamente percorrida. De mais a mais, como nos ensina Salcedo-Bastardo, todas as concepções que nos parecem óbvias e evidentes, muitas vezes escondem obstáculos tremendos para a compreensão autêntica.

Tendo tudo isso em vista, penso que uma boa pergunta que deveríamos fazer para nós mesmos e, por meio dela, avaliarmos as nossas reais intenções frente à história e, para medirmos, o quão profunda é a nossa sinceridade, seria: o que estou dizendo a respeito dos acontecimentos de 64 são fruto de longos períodos de solidão e estudo, ou apenas algo que repito ad nauseam para legitimar minha posição política partidária no momento presente?

Pois é, mas como havíamos dito, o caminho para o conhecimento histórico não é linear. É sinuoso e cheio de obstáculos pelo meio do caminho que, invariavelmente, nos surpreendem pra caramba. E, para ser franco, penso que é justamente aí que reside o barato dos estudos feitos junto à escrivaninha de Heródoto.

E o resto é o que é: resto.

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela

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