Bruno Zampier

Por Bruno Zampier

Desde o início do governo Bolsonaro, a nomeação de ministros declaradamente cristãos vem causando indignação em certos grupos minoritários da extrema-esquerda. Denunciando supostas violações ao princípio do Estado laico como um ataque aos pilares da democracia, vem apontando alguns discursos e posicionamentos de viés religioso que seriam inaceitáveis em agentes públicos. Talvez a ministra Damares Alves seja a campeã em irritar os defensores mais extremistas do secularismo[1].

Esta indignação está alicerçada nos ideais burgueses da Revolução Francesa, algo que talvez os esquerdistas não gostem muito de lembrar ou de saber. Historicamente, a justificativa para o Estado laico encontra-se nos diversos episódios de perseguição religiosa que se acumularam ao longo dos séculos, principalmente entre católicos, protestantes, judeus e islâmicos. Também entram neste cálculo, a título de exemplo, a Inquisição, as Cruzadas, os conflitos entre hindus e muçulmanos na Índia e no Paquistão, as guerras sangrentas entre xiitas e sunitas que se arrastam há séculos por todo o Oriente Médio. Reivindicando para si a autoridade e o poder para intermediar não só os conflitos religiosos, mas todo e qualquer conflito por ventura existente na sociedade (luta de classes, conflitos raciais, xenofobia, etc), o Estado moderno declara-se como a única entidade capaz de dar um fim à guerra de todos contra todos.

Esta neutralização dos conflitos não se dá pela eliminação dos grupos divergentes, mas pela tentativa de se construir princípios e critérios comuns a todos os grupos, de forma que o Estado se torne o elemento coordenador dos esforços para a paz. Obviamente, trata-se de um equilíbrio tão sutil quanto caminhar no fio de uma navalha: a coexistência de grupos com idéias, princípios e objetivos de vida completamente diversos – e até opostos – dentro de uma mesma comunidade, organizada e construída para que todos possam viver e prosperar em conjunto: ateus e teístas, ricos e pobres, nativos e estrangeiros, cristãos, islâmicos e judeus, hedonistas e ascetas, etc.

Talvez fosse uma utopia ousada demais, mas é justamente nela que baseamos as nossas leis e a organização do governo há mais de duzentos anos, justamente porque não foi possível, ao longo da História, eliminar os grupos divergentes. As tentativas religiosas mais extremas para eliminá-los, resultaram em guerras – as chamadas guerras santas – que não resolveram o problema.  Então, pensando assim, talvez seja o caso mesmo de neutralizar a religião e mantê-la sob vigilância: eis o Estado moderno, onde a atuação de uma ministra como a Sra. Damares Alves é considerada um perigo.

Por outro lado, o Estado moderno, elegendo a ciência como único critério válido para a tomada de decisões na esfera pública, não é imune aos radicalismos. É preciso reconhecer que foram em pressupostos científicos que o comunismo, o fascismo, o nacionalismo e o nazismo foram concebidos. Foi Karl Marx quem batizou sua doutrina de “socialismo científico” e partir daí, os russos criaram os Gulags, os primeiros campos de concentração do século XX. Os nazistas, aprendizes dos comunistas russos, criaram toda uma revisão histórica – baseada em um discurso científico – para alegar que a raça ariana era superior à todas as outras, justificando assim a escravização dos “inferiores” ou mesmo o seu uso em perversas experiências científicas.

Foi a ciência, em laboratórios e campos de testes onde a religião não existia, quem criou as bombas atômicas, despejadas sobre homens, mulheres e crianças de Hiroshima e Nagasaki, na época as cidades mais católicas do Japão. Observe-se também que os campos de concentração do século XX, na Alemanha, na Rússia e na China, responsáveis pela morte de mais ou menos 100 milhões de pessoas, nada mais são do que prisões em que o método científico-industrial foi empregado para produzir extermínio em massa, algo inimaginável para a mentalidade religiosa medieval, por exemplo. Diante desse quadro, talvez devêssemos cogitar agora a hipótese de que, quem deveria ser neutralizado e mantido sob vigilância sejam os cientistas e os sacerdotes do laicismo radical.

Penso que a resposta mais acertada a esta questão foi dada pelo então cardeal Joseph Ratzinger (posteriormente Papa Bento XVI) em um debate com filósofo secularista Jurgen Habermas em janeiro de 2004. Conclusão aliás que selou um belo acordo entre os debatedores:

O que importa é uma ‘libertação da obcecação histórica de que a fé já não teria nada a dizer ao ser humano atual pelo simples fato de ela contradizer a idéia humanista da razão, do Iluminismo e da liberdade’. Nesse sentido, eu falaria da necessidade de uma correlacionalidade entre razão e fé, entre razão e religião. Ambas são chamadas a se purificarem e curarem mutuamente, e é necessário que reconheçam o fato de que uma precisa da outra[2].

Todavia, esta conclusão não satisfaz os interesses das alas mais radicais, aquelas mesmas que se revoltam com toda e qualquer manifestação de posicionamento religioso nas esferas públicas. Para elas, somente as ideologias científicas – e pseudo-científicas – como a ideologia de gênero, o feminismo, o humanismo, o garantismo penal, o socialismo e tantas outras vertentes disponíveis em livros, cursos e canais do youtube, podem ter o seu “lugar de fala” nos plenários do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional e dos ministérios.

É preciso lembrá-los que não é possível provar cientificamente que o holocausto nazista foi algo reprovável, como bem argumentou Willian Lane Craig em um debate com Peter Atkins[3]: somente a religião e a filosofia moral podem fazê-lo. É preciso que também observem que, se um religioso não pode tomar decisões a partir de suas íntimas convicções – inclusive na esfera pública – então somente as ideologias pseudo-científicas detém o poder e a legitimidade para a tomada de decisões que afetam a todos, como destinação de verbas públicas, cobrança de tributos, políticas assistenciais e assim por diante. Em outras palavras, pessoas religiosas estariam banidas e formariam um grupo marginalizado, o que por si só constitui um risco para o equilíbrio social. Aliar-se a uma bandeira ideológica seria um requisito para a participação na sociedade, configurando uma nova forma de autoritarismo. Nesta sociedade, todas as idéias teriam espaço, menos as idéias religiosas.

É exatamente neste erro que incorrem todos aqueles que criticam, por exemplo, a ministra Damares, desqualificando-a por causa da sua fé, etiquetando a religião como um perigo nefasto para a paz e a harmonia, esquecendo-se de que os laboratórios da ciência e os livros dos cientistas produziram as armas mais violentas e algumas das ideologias mais estúpidas da História humana. Se a religião teve suas fogueiras, a ciência teve suas bombas e campos de concentração.

Não que uma ministra não possa ser criticada: mas que o seja pelos seus métodos, pela sua competência (ou incompetência) e pelos frutos de seus projetos, não pelas suas convicções mais íntimas. Se nenhum membro do PT é criticado por acreditar em Che Guevara ou Karl Marx; se nenhum membro do PSOL é criticado por acreditar em Judith Butler, então que não critiquem cristãos por acreditarem na Bíblia e na tradição cristã. Que critiquem as idéias e suas conseqüências, não as convicções íntimas, vitais em uma sociedade tolerante. Desde que a ministra não use recursos públicos para favorecer a sua igreja, não está de forma alguma violando o Estado laico. Exigir que a própria consciência da ministra seja laica, sugerir que sua argumentação só teria validade se baseada em alguma ideologia da moda, é radicalismo vulgar. 

Por fim, é preciso que se lembrem de que o bom senso de fato nunca foi uma propriedade dos extremos: ele está no tênue fio da navalha, onde a religião reconhece a legitimidade da ciência, e onde a ciência reconhece a validade da religião. Que ninguém seja obrigado a crer é uma exigência legítima; mas é também nossa esperança, que não sejamos tratados como ratos de laboratório. Se nada mais nos restar além da ciência, então nada nos restará além de sermos classificados como mamíferos, junto com os ratos, e já sabemos qual será nosso destino.


[1] Por exemplo: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/inimiga-do-estado-laico-damares-quer-usar-pandemia-para-pregacao-evangelica-na-familia/

[2] HABERMAS, Jurgen; RATZINGER, Joseph. Dialética da Secularização: sobre razão e religião. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2007, p. 88-89.

[3] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=z8Gba-z_RiQ

 

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