Bruno Zampier

Por Bruno Zampier

Gnosticismo é o nome que normalmente se atribui ao um conjunto de crenças e filosofias surgidas nos primeiros séculos da era cristã. Em geral, atribui-se aos antigos gnósticos, a crença de que o mundo físico fora criado por um deus mau, para aprisionar as almas que emanavam de um deus bom. Para embasar essa doutrina, valiam-se de um conjunto sincrético dos mais variados textos religiosos e práticas pagãs. Assim, extraiam suas conclusões a partir de uma mescla dos ensinamentos da mitologia egípcia, mitologia grega, mitologia romana, da filosofia de Platão e seus discípulos, de Pitágoras, dos ritos iniciáticos de Elêusis e também das Sagradas Escrituras.

De acordo com certas correntes gnósticas, por exemplo, o Antigo Testamento revelava a atuação de um deus mau, que incitava os homens a morte e guerras, criador de um mundo perverso, enquanto que o Novo Testamento, revelava o advento de um deus bom, o criador das almas, cuja missão era libertar os homens do aprisionamento no mundo físico. A partir disso, não só criavam uma interpretação alternativa das Sagradas Escrituras como também passavam a acreditar em algumas coisas, digamos, bizarras.

Uma delas é que, uma vez que o mundo físico era criação de um deus mau, concluíam que as mulheres que engravidavam tornavam-se cúmplices e aliadas de um deus mau, cooperando com o terrível aprisionamento de almas no mundo terrestre. A veneração a Maria, por exemplo, estava fora de cogitação. E não demorou muito para que começassem a matar mulheres grávidas.

Tais crenças foram declaradas heréticas pela Igreja Católica já no século II, quando o bispo e mártir Irineu de Lião escreveu a obra “Sobre a detecção e refutação da chamada Gnosis”, primeiro tratado a usar o termo “gnose” para se referir às seitas que na época disputavam espaço com o chamado Cristianismo Ortodoxo, isto é, o Cristianismo conforme ensinado pela Igreja. Boa parte de seu livro chegou até os dias de hoje com o nome de “Contra Heresias”, integrando a coleção de livros dos primeiros padres da igreja a que se dá o nome de Patrística. Interessante notar que na obra de Irineu, já se encontra a crença na Santíssima Trindade, na Eucaristia e ressurreição da carne, tal como ensinado pela Igreja Católica até os dias de hoje. Escreve Irineu:

  Portanto, quando o cálice de vinho misturado com a água e o pão natural recebem a Palavra de Deus, transformam-se na eucaristia do Sangue e do Corpo de Cristo. 
 Recebendo a palavra de Deus, tornam-se a eucaristia, isto é, o Corpo e o Sangue de Cristo. Assim também os nossos corpos, alimentados pela eucaristia, depositados na terra e nela desintegrados, ressuscitarão a seu tempo, quando o Verbo de Deus lhes conceder a ressurreição para a glória do Pai. É ele que reveste com sua imortalidade o corpo mortal e dá gratuitamente a incorruptibilidade a carne corruptível. Porque é na fraqueza que se manifesta o poder de Deus. 

Também a veneração à Virgem Maria, como corredentora da humanidade, fica clara em alguns trechos, como este:

“Mesmo Eva tendo Adão como marido, ela ainda era virgem… Ao desobedecer, Eva tornou-se a causa da morte para si e para toda a raça humana. Da mesma forma que Maria, embora tivesse um marido, ainda era virgem, e obedecendo, ela tornou-se causa de salvação para si e para toda a raça humana”

Sustentando a primazia da Igreja de Roma, enumera os bispos que a governaram a partir da sucessão apostólica, isto é, os primeiros Papas:

  Para a maior e mais antiga a mais famosa Igreja, fundada pelos dois mais gloriosos Apóstolos, Pedro e Paulo." e depois "Os bem-aventurados Apóstolos, portanto, fundando e instituindo a Igreja, entregaram a Lino o cargo de administrá-la como Bispo; a este sucedeu Anacleto; depois dele, em terceiro lugar a partir dos Apóstolos, Clemente recebeu o episcopado. 
 (Contra as Heresias - 1.III, 1,12; 2,1´2; 3.1´3; 4,1; P.G. 7, 844ss; S.C.34) 

Irineu afirmava que todas as igrejas deveriam estar de acordo com Roma, devido à sua “autoridade preeminente”:

Mas visto que seria coisa bastante longa elencar, numa obra como esta, as sucessões de todas as igrejas, limitar-nos-emos à maior e mais antiga e conhecida por todos, à igreja fundada e constituída em Roma, pelos dois gloriosíssimos apóstolos, Pedro e Paulo, e, indicando a sua tradição recebida dos apóstolos e a fé anunciada aos homens, que chegou até nós pelas sucessões dos bispos, refutaremos todos os que de alguma forma, quer por enfatuação ou por vanglória, quer por cegueira ou por doutrina errada, se reúnem prescindindo de qualquer legitimidade. Com efeito, 'deve necessariamente estar de acordo com ela, por causa da sua autoridade preeminente, toda a igreja, isto é, os fiéis de todos os lugares, porque nela sempre foi conservada, de maneira especial, a tradição que deriva dos apóstolos. 
 — Contra as Heresias, Livro III, capítulo 3, vers. 2 

Irineu de Lyon escreveu tais coisas no século II e poderíamos citar diversos outros padres dos primeiros séculos que dedicaram-se a refutar as seitas gnósticas. No entanto, tais crenças nunca morreram. Elas permaneceram vivas nas obras de Platão, nas histórias preservadas da mitologia, nas sociedades secretas e mesmo no protestantismo. Também causou um reavivamento no interesse pelo pensamento gnóstico, a descoberta da biblioteca da Nag Hammadi em 1945, quando arqueólogos desenterraram um conjunto de escritos contendo evangelhos apócrifos, cujo conteúdo, fora declarado herético por Irineu e outros padres dos primeiros séculos.

Não deixa de ser curioso o fato de que uma crença baseada em interpretações bizarras da Bíblia e ritos pagãos da Antiguidade – já abandonados há milênios – desperte não apenas interesse, mas até adesão intelectual na modernidade.

Em um de seus cursos[1], Olavo de Carvalho apresenta uma possível resposta: antes de ser uma doutrina elaborada e complexa, o gnosticismo é um tipo de experiência humana. Isto significa que o gnosticismo não nasce como uma divagação em idéias abstratas, ou como um sincretismo teórico a partir das mais variadas e bizarras crenças. De acordo com Olavo de Carvalho, o gnosticismo nasce a partir de uma questão, extraída de uma certa experiência humana. Qual experiência é esta? Trata-se da experiência de sentir-se abandonado, apartado, separado de Deus. Não é, evidentemente, uma crença para ateus.

É uma sensação ou experiência daquele que, compreendendo e aceitando a existência de um reino espiritual, torna-se indignado ou revoltado com algum evento traumático. Assim, a morte de um ente querido, a pobreza, uma doença incurável, uma injustiça sofrida torna-se ocasião para o indivíduo questionar-se: “onde está Deus que não me ajuda?”. Uma vez que todo e qualquer ser humano passa inevitavelmente por experiências deste tipo, é natural que, ao racionalizar e buscar respostas, o sujeito acabe construindo idéias mirabolantes. Em um nível mais complexo e elaborado, dá origem a múltiplas técnicas de interpretação das Sagradas Escrituras, uma mistura com doutrinas de reencarnação (que já existiam nos gregos antigos), uma conformidade com práticas pagãs milenares.

Para aquele que já aderiu ao gnosticismo, a coincidência de tais crenças, em povos e épocas tão diferentes é a prova de que se trata de uma doutrina verdadeira. Para Olavo de Carvalho, é a prova tão somente de que o gnosticismo nasce a partir de uma experiência comum a todas as pessoas: sentir-se abandonado. Tal experiência é tão humana que até Cristo, no alto da cruz, brada aos céus: “Pai, por que me abandonaste?” Entretanto, diga-se logo: ter uma experiência gnóstica, isto é, o sentimento de abandono, não é o mesmo que ser um gnóstico. Pois o gnóstico, tecnicamente falando, não é aquele que apenas teve uma sensação. É aquele que adere a uma racionalização deste sentimento, pescando aqui e ali, elementos para justificar a existencia do mau no mundo.

No caso, adere a uma idéia básica: o mundo concreto e tudo aquilo que nele está, não é bom e nem pode ser bom. Daí surgem as mais variadas correntes: o espírito só será livre quando se libertar da carne; a Igreja de Cristo não é concreta mas apenas espiritual; ou ainda, nos níveis mais extremos (o qual vamos visualizando hoje em dia), o sujeito acredita que há uma separação entre o seu “eu” e o seu “corpo”. Dito de outra forma: a crença de que eu e meu corpo são coisas diferentes e que, portanto, com o meu corpo faço qualquer coisa, pois ele é apenas uma casca pilotada por meu espírito. Uma casca defeituosa em algum sentido, pois o gnóstico está sempre insatisfeito com tudo o que é do mundo, o que inclui seu corpo físico.

Mas se assim fosse, diz a doutrina católica ortodoxa, nós seriamos anjos: seres puramente espirituais, que, por algum motivo bizarro, foram sacaneados por Deus ao serem aprisionados em um corpo físico. Mas tal pensamento esbarra no primeiro parágrafo da Bíblia, quando após terminar a criação do mundo físico, Deus conclui: tudo é bom. Esbarra também na ressurreição de Cristo, de corpo e espírito: Jesus ressuscitado chega a comer peixe grelhado para provar aos apóstolos que não é apenas espírito.  

Assim, a confusão gnóstica foi rejeitada desde os primeiros séculos. Ela consiste em extrair conclusões erradas a partir de uma experiência real. Ela conduz à idéia de que o nosso espírito angelical está sempre correto e que o problema é sempre o mundo: devo mudar o mundo, devo mudar meu corpo, devo manipular tudo o que existe, porque aí, as coisas serão melhores. Sim, é mais fácil pintar a casca do ovo, do que transformar o seu interior em um omelete. Para isso, é preciso fogo. Um fogo que não interessa aos gnósticos que, ignorando a essência do mundo e até de si mesmos, não conseguem ver nada de positivo naquilo que é concreto.

É por isso que, para os gnósticos, a Quaresma não tem significado nem importância. Ela é como que um período de gestação, de preparação interior, para o nascimento de algo concreto e bom. Para os cristãos, desde os primeiros séculos, é uma ocasião para se dedicar a uma revolução, mas que não vem de fora. O sofrimento imposto pelo mundo não é, no verdadeiro cristianismo, algo injusto ou infrutífero. Ele é apenas uma oportunidade para oferecer resistência e tornar-se mais forte.

Por isso, o jejum dos cristãos não é, na verdade, uma recusa da comida que alimenta um corpo-prisão. Ele é a prática daquele que busca apenas restabelecer o equilíbrio das coisas: o domínio do espírito, mas sem recusar a vida concreta. O seu objetivo, ao contrário do gnosticismo, não é recusar o mundo e tudo o que ele contém: seu objetivo é vencê-lo.  Talvez fosse uma empreitada ousada demais, inacessível a reles mortais, se o próprio Deus não viesse em nosso auxílio para anunciar que Ele mesmo está ao nosso lado nesta luta:

Eu disse essas coisas para que em mim vocês tenham paz. Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo”. (João, 16,33)


[1] Ver: https://www.youtube.com/watch?v=5JbMdHwm7Js&t=15s

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