Bruno Zampier

Formado em Direito pela UniCuritiba em 2009, pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional; Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná. Advogado e professor de Direito Penal no Centro Universitário Campo Real em Guarapuava-PR.  

Zampier passa a escrever aos domingos, confira seu primeiro texto:

O ENSINAMENTO CRISTÃO: PACIFISMO OU PENA DE MORTE?

Em mais um capítulo das acaloradas altercações facebookianas, internautas de todos os cantos digladiaram-se em torno da velha questão sobre o direito ao aborto e a legitimidade da pena de morte. Uma torrente de argumentos retóricos, jurídicos, filosóficos e religiosos, misturados com estatísticas, frases enlatadas, ironias e ataques pessoais, formaram um volumoso mix, suficiente para produzir milhares de livros, caso tudo fosse impresso. Tão rica e variada argumentação ao alcance de um recorta e cola da internet só pode ter por objetivo demonstrar erudição e domínio do assunto. Duas coisas, no entanto, escapam à perspicácia de tão preclaros debatedores: a noção de coerência e de profundidade na análise. Uma argumentação larga, porém rasa, é como uma marmita com centenas de metros de diâmetro: pode até ser que caiba muita água, como em uma piscina, mas você nunca vai conseguir nadar nela.

Um notável exemplo dessa superficialidade se observa na noção de Cristianismo formulada no imaginário de muitos jovens de todas as idades que se aventuram em tais debates. É muito raro encontrar hoje uma pessoa que saiba localizar na Bíblia o famoso Sermão da Montanha ou que saiba citar os dez mandamentos. Mesmo entre católicos, a maioria sequer possui em casa uma edição do Catecismo, compêndio dos ensinamentos da Igreja. Ano após ano as pesquisas mostram que os jovens se afastam cada vez mais da religião. Não obstante, não raro pontificam em matéria de religião, aparentando muita convicção e firmeza, como se dominassem o assunto. Mas é só pose.

Quando o estudo disciplinado e sério não faz parte da formação intelectual – em qualquer assunto – a conseqüência inevitável é que a pessoa interpretará aquele tema com as noções que ela recebeu de fontes aleatórias como a televisão, as músicas, as novelas, os políticos ou jogadores de futebol. Em particular a noção de Cristianismo apresentada parece ter sofrido uma séria influência do movimento hippie dos anos 70, em que Jesus é apresentado como um pacifista “paz e amor”. Por isso, causa muita estranheza aos jovens de hoje, descobrir que tanto protestantes quanto católicos, o que inclui aí os maiores estudiosos da Bíblia e gênios da teologia como São Tomás de Aquino e Santo Agostinho – clássicos do pensamento ocidental – concluíram que a pena de morte, por exemplo, é compatível com os ensinamentos de Cristo, mas que o aborto é pecado grave em qualquer hipótese.

Há mesmo quem acuse de falta de lógica a posição que sustenta ao mesmo tempo a pena de morte para estupradores e proibição do aborto para crianças inocentes. Muitos enxergam aí uma incompatibilidade, sem cogitar que talvez não tenha sido São Tomás de Aquino a faltar na aula de lógica formal. No entanto, mesmo pessoas leigas em Direito, embora talvez não possam dar uma explicação técnica, percebem que não há incompatibilidade alguma. A explicação técnica é deveras simples: princípio da culpabilidade. Em outras palavras: a vida de um inocente é intocável, mas um criminoso cuja culpa foi comprovada merece sofrer uma pena. Se, deve ser uma pena de morte ou pena privativa de liberdade é outra história, mas o fato é que uma discussão sobre o assunto entre pessoas minimamente instruídas, parte do pressuposto de que não há incompatibilidade lógica entre defender a vida de um inocente e a condenação de um culpado. Na verdade, esse princípio é a base de qualquer regra jurídica ou moral, pelo menos, desde os tempos de Cícero. Sem esta noção elementar, um debate racional é inviável.

No que diz respeito ao Cristianismo, o recurso a pena de morte sempre foi considerado legítimo pelos mais gabaritados intérpretes da Bíblia. É verdade que pelo menos um trecho dos Evangelhos parece rejeitar a pena de morte: é a bela passagem da adúltera que foi salva por Jesus quando estava prestes a ser apedrejada (João 8, 10-11). Além disso, recentemente o Papa Francisco alterou o parágrafo do Catecismo da Igreja Católica (§ 2267) organizado por São João Paulo II e que refletia a posição da Igreja por praticamente dois mil anos. Na nova redação, nega-se a legitimidade da pena capital. Antes de aderir a uma opinião, auto lá, é preciso ter em mente os argumentos opostos, que convenceram estudiosos mais capacitados que eu e você, por dois mil anos. Vamos lá.

Ao longo da história desse debate, outras duas importantes passagens bíblicas pesaram em sentido favorável à pena capital. Quando Pilatos, governante da Judéia, afirmou que tinha poder de vida e morte sobre Jesus, Este não contestou sua autoridade e nem a legitimidade da pena de  morte. Pelo contrário, apenas a confirmou, salientando que tal poder era concedido pelo próprio Deus:

Então Pilatos o advertiu: “Tu te negas a responder-me? Não sabes que eu tenho autoridade para te libertar e poder para te crucificar?” Ao que Jesus lhe afirmou: “Não terias qualquer poder sobre mim, se não te fosse dado de cima. Por isso, aquele que me entregou a ti é culpado de um pecado ainda maior.” (João 19, 10-11)

Tal passagem foi o fundamento medieval não só para a pena de morte, mas inclusive para os governos monárquicos que se sucederam por mais de mil anos.

Uma outra passagem é igualmente marcante na questão pena de morte: o “bom ladrão” crucificado ao lado de Jesus, reconhece a legitimidade e justiça da punição que lhe foi imposta, rogando a Jesus que lembre-se dele no Reino dos Céus. Jesus de fato não contesta seu parecer favorável à justiça daquela pena, mas diante de seu arrependimento e confissão, bem como o reconhecimento da inocência de Cristo, promete-lhe o Paraíso:

‘Tu nem ainda temes a Deus, estando na mesma condenação? E nós, na verdade, com justiça, recebemos o que os nossos feitos mereciam; mas este nenhum mal fez. ’E disse a Jesus: ‘Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino.’ E disse-lhe Jesus: ‘Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso.’ (Lucas 23:40-43)

É justamente o arrependimento e a confissão que parecem ter isentado a adúltera da condenação a morte, isso sem falar na razoável hipótese de que a pena capital era uma pena severa demais para o adultério. De qualquer maneira, mesmo na passagem da adúltera não se questiona a legitimidade da pena, mas a autoridade moral daqueles que a julgavam: eles mesmos eram adúlteros e, hipócritas, não se submetiam à mesma pena. Mas a situação é bem outra quando estamos falando de um assassino ou um estuprador de crianças.

Complementarmente, observe outra passagem em Lucas, 22-36:  por ocasião da Última Ceia, quando dava orientações aos apóstolos e discípulos que seriam enviados aos quatro cantos do mundo para evangelizar, Jesus incluiu a ordem para que comprassem espadas. Tal ordem, entendem os intérpretes, se trata de uma autorização para a legítima defesa, tendo em vista que os apóstolos iriam contestar as crenças de povos selvagens e hostis, recebendo autorização para se defender, caso investissem contra suas vidas.

É por isso que na verdade, na concepção dos grandes intérpretes, o cristão é pacífico, mas não é um pacifista estilo hippie. A diferença é que um pacifista, não importa o que aconteça, assume o dever de jamais praticar um ato de violência. Um cristão assume tão somente o dever de jamais praticar a violência por iniciativa própria, mas está obrigado a reagir quando a violência de outrem possa afetar aqueles que não podem se defender[1]. Assim, o cristão tem o dever de proteger a si mesmo quando dele dependem outras pessoas, como os filhos. O cristão também tem o dever de agir em legítima defesa – o que inclui a violência obviamente – para proteger sua esposa e seus filhos do ataque de um invasor, por exemplo.

E para isso o cristão deve saber se proteger: no manuseio de armas e nas artes marciais. É curioso observar que a sociedade que prega o pacifismo, reclama quando os homens contemporâneos permanecem inertes quando vêem uma mulher sofrendo violência doméstica: o governo e a mídia investem em propagandas para orientar as pessoas a ajudarem e protegerem as vítimas indefesas. No Cristianismo, isto é um ensinamento milenar.  Cabe ao homem o dever de proteger a família, mesmo que para isso precise arriscar a própria vida: “Marido, ame a sua esposa, assim como Cristo amou a Igreja e deu a sua vida por ela” (Efésios 5, 25-31). Como exemplo histórico, cite-se o fato de que na década de 30 diversos intelectuais franceses defenderam a reestruturação do exército para que a França pudesse se defender de um possível ataque da Alemanha nazista. Tais clamores foram negligenciados e pouco tempo depois o Exército Alemão invadiu a França, promovendo carnificinas: os pacifistas nada tiveram a fazer além de assistir a barbárie nazista exterminando judeus, negros, ciganos e deficientes físicos.

Quanto ao posicionamento da Igreja firmado no Catecismo, seja contrário seja favorável, não é dogma de fé, evidentemente. No entanto, é fato que a alteração promovida pelo Papa Francisco é uma mudança em um ensinamento milenar de milhares de teólogos ao longo da História. Inclusive, observe que na nova redação do parágrafo 2267 afirma-se: “foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos, sem tirar, ao mesmo tempo e definitivamente, a possibilidade do réu de se redimir.” Não se contesta que a finalidade de reforma moral do condenado é a mais nobre de todas, no entanto, é preciso reconhecer que a eficácia deste objetivo esbarra na ausência, mesmo na psicologia ou psiquiatria, de um método eficaz que garanta a “cura” de psicopatas. Uma vez em liberdade, nada pode garantir que o estuprador psicopata não volte a violentar crianças.  E de fato, os índices de reincidência são imensos.

Certamente, em um mundo perfeito a violência não é necessária. Mas aí estaríamos falando do Paraíso prometido por Deus. Neste mundo atual, a injustiça e a violência arbitrária são uma lamentável rotina e, portanto, combatê-la com os meios adequados é uma necessidade. No fim das contas, você é livre para opinar neste assunto como quiser e precisamos reconhecer que existem grandes argumentos de grandes personalidades nos dois lados. Só não vale ignorar por completo a história do assunto e negligenciar os requisitos de um raciocínio lógico. O exercício da liberdade sem a sabedoria já nos causou a expulsão do Paraíso e não é insistindo no erro que um dia retornaremos a ele.

[1] No Catecismo da Igreja Católica, ver parágrafos 1909; 2308; 2263-2267.

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