Nesse clima de quarentena, me deu na ventana de querer reler o livro do historiador Nicolau Sevsenko sobre a Revolta da Vacina. Releio ou não releio? Releio ou não releio? Reli e, sou franco em dizer que, a cada página virada, a cada capítulo findado, não sabia se ria ou chorava; tamanha são as parecenças e as semelhanças que se apresentam entre o revolterio de 1904 com o quadro vivido por nós nesse ano da Graça de 2020.

Digo isso porque há algumas passagens dessa peça da história de nosso triste país, que foram encenadas nos teatros da vida, que nos convidam a refletir sobre algumas peripécias presentes na opereta bufa que hoje, em parte assistimos e, doutra parte atuamos como figurante.

Não estou afirmando que a pandemia de “coronga” vírus é igualzinha a referida revolta. De jeito maneira. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, como dizem os guris. Parece-me apenas que a história desta pode nos ajudar a matutar um pouco a respeito dos caminhos e descaminhos que estão sendo trilhados por nós nessa dantesca situação. Apenas isso, nada mais do isso, tão somente isso.

Feita essa observação, sigamos com o andor. Vejamos alguns fatos curiosos sobre a revolta da vacina. Vamos lá: havia uma tremenda confusão de informações que havia sido criada em torno da vacinação obrigatória. Era um Deus nos acuda. O então presidente, Rodrigues Alves, tinha um problema em suas mãos e, aparentemente, queria de fato resolvê-lo; mas, você sabe como são as coisas: alguns opositores, oportunistas, aproveitaram a situação para fazer um sarceio; outros opositores, de verve mais autoritária, positivista, juntamente com partidários do velho florianismo, também se colocaram a fazer barulho com o intento de derrubar o presidente e, se tudo corresse, do jeitinho que eles esperavam, poderiam implantar uma ditatura positivista, ou florianista, ou qualquer coisa onde eles pudessem mandar e desmandar como bem entendessem. Mas, tudo isso seria feito em nome do bem do povo, que fique claro.

Em meio a esse furdunço, inúmeros homens de ciência colocavam-se contra a vacinação obrigatória e, outros, a favor. Inúmeros políticos e intelectuais também.

Rui Barbosa, por exemplo, era tremendamente contra. Lauro Sodré e Barbosa Lima também.

Dentre os homens de ciência tínhamos aqueles que juravam, com os pés juntinhos diante do busto de August Comte e da estátua de Clotilde de Vaux, que a vacina não era eficaz e, inclusive, havia aqueles que afirmavam que a dita cuja era perigosa ao ponto de poder matar as pessoas.

Isso mesmo amiguinho. Era um trem bonito de se ver, digo, de se ler. Nesse duelo de penas e tinteiros, houve um caso enigmático que bem retrata o clima de absurdidade que tomou conta da galera naqueles idos de 1904. Uma senhora morreu e então, algumas autoridades fizeram a autópsia da dona e concluíram que a mesma teria batido com as doze por causa da vacina. Não preciso nem dizer, mas o digo: a galera foi ao delírio.

Mas o rolo não parou por aí não. Osvaldo Cruz, então responsável por toda bagaça da saúde pública, exigiu que fosse feita uma nova autópsia. Não apenas isso. Ele mesmo a fez e concluiu que a primeira estava redondamente errada. A vacina não havia causado a morte da senhora.

Aí meu velho, foi como jogar gasolina numa fogueira de festa de São João. O bicho ficou feio.

Detalhe importante: creio que até hoje ninguém sabe exatamente do que realmente aquela senhora morreu.

Seja como for, os golpistas estavam doidinhos para derrubar o presidente, mesmo que ele tivesse a maioria do congresso ao seu lado e, nesse ínterim, o saco de paciência do povo estava ao ponto de estourar; ele, o saco do povo, já estava cheinho desde o início das reformas urbanas da capital Federal.

E estourou. E o trem não ficou nem um pouco bonito, porque a histeria gerada pela desinformação, pelos oportunismos de toda ordem, pela insatisfação e indignação da população, transformou-se rapidinho em violência generalizada.

Paralelepípedos arrancados e transformados em armas, bondinhos virados e queimados, confrontos, praças e ruas transformadas em praças de guerra, trincheiras improvisadas, depredação, saques, bloqueios, toques de recolher, enfim, o caos.

A polícia não foi capaz de acabar com o fervo. O exército juntou-se às forças policiais e, isso também, não resolveu a parada. Foram convocadas as tropas que estavam fora do Rio de Janeiro para tentar colocar ordem no pandemônio e aí, gradativamente, as coisas foram voltando ao normal.

Enfim e por fim, não temos como negar que esse tormento vivido por nossos antepassados nos convida a fazer algumas analogias – guardando, é claro, as devidas proporções – com a situação que vivemos no momento presente, fazendo-nos, inclusive, concordar com as palavras do sapo barbudo, Karl Marx, que, em seu livro “O 18 de Brumário de Louis Bonaparte”, havia dito que a história se repete; primeiro como tragédia, depois como farsa.

Pois é. Mas a farsa é sempre pior que a tragédia, porque a segunda sempre acaba nos conectando com algo que nos eleva para além das cinzas do tempo, enquanto a primeira apenas atesta o quão frágil é nossa tão idolatrada capacidade de compreender criticamente o sofrimento que nos é narrado pelas amareladas páginas da mestra da vida e, principalmente, o quão limitada é nossa disposição para entender o que estamos vivendo nesse momento da história.

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela, em 02 de abril de 2020, dia de Nossa Senhora de Zeitoun.

  

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