Lá por meados dos anos noventa iniciei minha graduação em História. Era a segunda que eu iria iniciar e, se tudo corresse bem, a segunda que eu iria abandonar. Naqueles idos, que não voltam mais, minha vontade era abandonar o mais rápido possível tudo aquilo a colocar o meu pé na estrada novamente e seguir vagando, sem destino, dum canto para outro do país. Porém, para infelicidade geral da nação, não foi isso que aconteceu.
Logo no primeiro dia de aula, lá estava eu, com uma cabeleira ao estilo “Alexandre de Moraes”. Fui ao mural do saguão de entrada, identifiquei qual seria a sala da minha turma e, como bom calouro, me bambeei até ela.
Olhei bem para turma, cumprimentei a todos e me dirigi para a última carteira da primeira fila junto à porta. Isso mesmo. Eu era um caipora do fundão, doidinho para abandonar tudo e seguir com minha vida sem rumo e sem destino, bem longe dos bancos escolares.
Então, na primeira aula, eis que entra pela porta um homenzarrão. Era o nosso primeiro mestre. Seu nome era Elias. Elias Dallabrida. Ele seria nosso professor de Teoria da História. Ele olhou firmemente para nossa turma e, sem proferir uma única palavra, todos ficaram silentes e rapidamente foram se colocando em seus respectivos acentos. Feito isso, ele se apresentou e começou a passar na lousa o nome da disciplina, juntamente com a ementa e com a bibliografia da mesma.
Nós, de nossa parte, como bons calouros, nos colocamos de pronto a copiar em nosso caderno todas aquelas informações. Lá pelas tantas, do nada, o homem ficou por alguns instantes estático. Calado, sem mover um único músculo, mantendo o giz pressionado contra o quadro negro. Aí, de vereda, ele olhou por cima de seu ombro direito, mirou-nos com suas vistas cansadas, e quebrou o silêncio, dizendo: “a História é perigosa; o historiador é um homem perigoso. Nunca se esqueçam disso”.
Bem, não sei o que se passou na cumbuca dos meus colegas, mas aquelas palavras, ditas com cristalina sinceridade e desconcertante convicção, me marcaram profundamente. Não que eu tenha me tornado um homem perigoso, ou que ele desejasse que nos tornássemos figuras temíveis. Não. Nada disso [apesar de, na ocasião, eu ter pensado exatamente nisso]. Com aquelas palavras, ditas de forma lacônica, ele estava nos dizendo que a História é algo muito sério. Mortalmente sério.
E sim, eu nunca me esqueci disso.
Na mesma semana estava eu na biblioteca a procura de um livro para fazer um trabalho que havia sido proposto por um outro professor. Na verdade, estava perdido feito cachorro caído de mudança em meio àquelas prateleiras.
De repente, do nada, feito o Batman, apareceu o professor Dallabrida. Ele parou bem diante de mim e mirando-me bem dentro dos meus olhos, disse: “vem comigo”. E ele ia singrando por entre aquelas prateleiras feito Odisseu em águas traiçoeiras e, em cada estante que parávamos ele pegava um livro e entregava em minhas mãos dizendo: “você tem que ler isso. E isso. E esse outro”.
Várias vezes isso aconteceu. Bastava colocarmos os pés na biblioteca que, se ele nos visse, era certeza que sairíamos de lá com pelo menos umas sete indicações de leitura. E ele encontrava aqueles títulos naquelas estantes, com uma facilidade, com uma familiaridade sem par.
Porém, o que nos interessa aqui, nessa escrevinhada, é essa vez primeira onde o professor nos abordou no santuário da biblioteca. Após ele ter nos deixado com aqueles livros eu disse a mim mesmo: se eu um dia for um professor é assim que eu quero ser. Eu quero ser um caboclo phoda como ele.
Depois do primeiro ano não mais tive aulas com o abençoado. Conversávamos uma vez ou outra nos intervalos, mas não mais tive aulas com o mestre Elias. Porém, as horas de convívio que tive com o professor são, até os dias de hoje, uma fonte inexaurível de inspiração para mim.
Em minhas estantes, guardo com carinho o livro “Ordem e Progresso” de Gilberto Freyre, e o “¿Que es la historia?” de Erich Kahler, que ele me presenteou.
Não que eu concordasse com as ideias e convicções dele. Nada disso. Creio que tínhamos muito mais pontos de discordância do que elementos de convergência. Porém, antes de qualquer coisa, ele era, de fato, um mestre e, por isso, muito do pouco que hoje sou, de fato, devo, em grande medida, às lições que ele me ensinou através da pessoa que ele era.
Pois é. Nesse fim de semana, o professor nos deixou. Sim, ele não está mais no meio de nós. Provavelmente, nesse momento, ele deve estar nos corredores da biblioteca celeste, caminhando com seu passo apressado, com os olhos extasiados diante da vastidão de títulos, sedento para lê-los e recomendá-los aos incautos que encontrar entre as estantes e, noutros momentos, provavelmente estará em colóquios sem fim, nos jardins dos justos, com os sábios de outras épocas, com os mestres de todos os tempos, discutindo sobre a sublimidade do sentido da vida que, aqui nesse plano da existência onde estamos, nos parece algo tão fugidio.
Enfim, é isso. Descanse em paz professor Elias.
Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela
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