Todo mundo conhece a obra “Os donos do Poder” de Raymundo Faoro. Se o amigo leitor nunca deitou suas vistas em suas páginas, imagino que, ao menos, já ouviu falar da dita cuja que, aliás, é uma obra prima. Porém, essa não é a única obra escrita pelo referido autor. Essa é apenas a que ganhou maior repercussão.

Dos outros livros de sua lavra, há um que considero uma obra tão importante e genial quanto a que foi apontada no primeiro parágrafo dessa escrevinhada. Refiro-me à obra “Machado de Assis: a Pirâmide e o Trapézio”.

Nesta, Faoro nos chama a atenção para as nuanças psicológicas que se fazem presentes numa sociedade patrimonialista-estamental como a nossa, tomando as personagens machadianas como modelos cristalinos para explicitar, aos nossos olhos desatentos, esses matizes que dão forma ao teatro de sombras da política brasileira.

Um ponto destacado pelo autor, e constante nas personagens do Bruxo do Cosme Velho, é a total falta de senso de grandeza que norteia grande parte do estamento burocrático e da nossa classe política. Neles, a mesquinhez é a regra, e a mediocridade o suprassumo da realização humana. Bem, e como todos muito bem o sabem, não há nada na galáxia que uma alma medíocre mais cobice do que um cadinho de poder para usar e abusar ao seu bel prazer.

Poder não para simplesmente enricar, apesar de muitos forrarem a guaiaca por meio dos usos e abusos do poder. O que em primeiríssimo lugar se deseja com a conquista de um cargo, ou de uma sinecura – por mais ralo que seja – é sentir-se uma “otoridade”, que tem em suas mãos as chaves que permitirão ao “homem medíocre” – tão bem descrito por José Ingenieros – ter os meios necessários para ocultar de si sua mendacidade nada original. Tais tipos humanos gostam, sim, dum cascalho no bolso, mas, mais do que isso, essas figuras amam poder mandar e desmandar como se fossem deuses dum reino sem redenção. Isso lhes propicia um prazer dionisíaco sem igual. Basta mirar nos olhos dessa gente, quando dão uma ordem qualquer, para constatar essa obviedade ululante.

De todas as personagens machadianas, creio que uma que bem ilustra esse traço deformado dos donos do poder, do poderzão e dos poderzinhos, seja o Alferes Jacobina, do conto “O Espelho”. Em resumidíssimas contas, esse era um rapaz humilde, que se tornou alferes e, por sê-lo, era bajulado por sua tia que lhe deu um espelho dos tempos da presença da família real portuguesa aqui nessas terras de Pindorama. Quando se via no espelho, com trajes comuns, via apenas uma pessoa comum. Agora, quando colocava sua farda, meu amigo, aí, segundo ele, via a sua “verdadeira pessoa”; ou, como a personagem diz, “cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro”.

Trocando em moelas, ou por qualquer miúdo de sua preferência, enfadonhamente, o “homem medíocre” tem sua vida profundamente ligada ao seu status e prestígio social. Para esse tipo humano, tão típico entre nós, a impressão que os outros fazem da nossa figura é muito mais importante que qualquer outra coisa. Não é à toa que a cultura do fingimento histriônico abunde nessas terras; não é por menos que o bom-mocismo politicamente correto tenha parido tantas e tantas crias entre nós.

Uns fazem pose com seus diplomas rotos, outros estufam o peito para desfilar nas ruas e nas redes sociais com suas roupas finas para aparentar um status que não tem, como há também aqueles que exibem um esclarecimento que não possuem.

Mas isso, sejamos francos, é café pequeno diante daqueles que, com seus cargos, carguinhos e cargões, se regozijam quando se impõem sobre os pacatos cidadãos, exibindo garbosamente o seu poder, abusando [educadamente] do seu uso para mostrar aos outros que ele não é apenas uma alma sebosa desprovida de personalidade, mas sim, que ele seria uma “otoridade” e, por isso, deve ser servilmente respeitada em nome da “ciência” oculta com suas letras apagadas.

É. Eis aí as duas almas apontadas por Machado de Assis. Infelizmente, de norte a sul do Brasil, temos incontáveis figuras que se olham no espelho, e veem-se de modo similar ao Alferes Jacobina, cheios de si por não serem nada em si, de modo similar as personas coletivas minuciosamente descritas por J. O. de Meira Penna em seu clássico “Em berço esplêndido – ensaios de psicologia coletiva brasileira”.

Não apenas se deleitam com o poder que tem em suas mãos, mas acreditam, sinceramente, que os abusos perpetrados por eles seria algo que estaria sendo feito com as mais elevadas e excelsas intenções e que, suas arbitrariedades, no fundo, têm por objetivo o “bem de todos”, mesmo que os ingratos que sofrem com elas não compreendam o quão grande é o bem que eles estão fazendo por todos.

Enfim, essa crise sanitária, com suas inúmeras arbitrariedades e inconstitucionalidades, está aí para que não tenhamos nenhuma dúvida quanto a leviandade e a malícia – que habitam entre o trapézio dos cargos, carguinhos e cargões e o triângulo do mandonismo político sem rédeas – que não se cansam de espoliar as pessoas comuns deste triste país em seus inúmeros e esquecidos rincões.

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela

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