Há mais ou menos uns dose anos, lembro-me de ter assistido a um dos episódios da série DR. HOUSE que me impactou duma forma particular. Nesse, uma empresa farmacêutica estava para fazer uma doação polpuda ao Princeton-Plainsboro Teaching Hospital, onde o Dr. House trabalhava. Porém, porque sempre tem um “porém”, o doutor Gregory deveria dar uma palestra – para uma galera – sobre um novo medicamento produzido pelo referido laboratório.

Bem, é claro que o nosso mal humorado preferido enrola até onde dá para não fazer a dita cuja da preleção em favor do laboratório, mas chegou um ponto que não mais foi possível; e lá foi o homem diante dum auditório cheio de pessoas importantíssimas, de todos os cantos do universo conhecido, para ouvir suas sapientes palavras sobre o tal novo remédio.

Ele foi ao púlpito, tomou o microfone em mãos e disse algo mais ou menos assim: “É… sim… o novo medicamento é muito bom… é isso… obrigado” e foi saindo.

Sua chefe, a doutora Lisa Cuddy, sentada ao lado do CEO da empresa que iria fazer a doação, olha pra ele com uma cara de quem iria mata-lo umas trocentas vezes e, então, cinicamente ele voltou ao púlpito e disse algo mais ou menos nesses termos: esse medicamento tem o mesmíssimo efeito do medicamento “tal”, produzido por essa mesma empresa, mas o prazo de validade de sua patente está para vencer, por isso o laboratório está tirando-o do mercado e colocando esse novo medicamento, que está sendo lançado agora. Medicamento esse que, praticamente, tem a mesma fórmula do anterior, porém, com um componente a mais, para evitar que o laboratório tenha perdas financeiras”. Dito isso, ele saiu do palco com sua pastinha de papelão em mãos.

Com essa declaração feita por ele, o hospital não recebeu a grana, a Cuddy ficou pau da vida e, daquele jeitão, a vida continuou na série por muitos episódios.

Gosto muito dessa passagem porque ela, para meu gosto, ilustra bem o que é a tal da ciência moderna.

Quando acessamos a grande mídia, ou vemos criaturas fofas besuntadas de margarina Doriana falando em nome da ciência, dá-se a impressão que estamos diante de pessoas dotadas de infalibilidade total e cabal, tendo em vista que a palavra ciência, na sociedade atual, é envolta duma aura mítica sem par. Basta evoca-la que todos sentem-se melindrados, dispostos a ficarem silentes diante do vaticínio que será anunciado por aqueles que se apresentam, formal ou informalmente, como seus sagrados porta-vozes.

Na verdade, quando falamos em ciência temos que nos perguntar sobre o que, exatamente, estamos falando, porque essa palavra se refere não a uma entidade unívoca, mas sim, a uma realidade com múltiplas dimensões que, por sua deixa, encontram-se imbricadas, juntas e misturas numa orgia epistemológica sem fim.

Explico-me: quando falamos em ciência podemos estar nos referindo a ciência enquanto definição, ou seja, como uma disciplina intelectual que procura construir um objeto a partir de um fragmento da realidade e, diante dele, essa disciplina propõem-se a elaborar uma série de métodos e conceitos para poder estuda-lo e formular uma gama de teorias para procurar explica-lo.

Resumindo: a ciência, por definição, não estuda a realidade, mas sim, um fragmento dela. Ou, como nos ensina Edmund Husserl, da mesma forma que não existe uma genética dos triângulos, não há uma trigonometria das baleias.

Outra face que pode nos ser revelada quando a palavra ciência é evocada seria o ideal cientifico que, por sua deixa, nada mais seria que a procura abnegada pela compreensão de algo que integra a realidade.

Uma terceira face são as intrigas, farsas e fogueiras de vaidade que, muitas vezes, se fazem presentes entre as pessoas que praticam uma ciência, tretas essas que vão desde a procura pelo tal do reconhecimento público até as disputas mesquinhas por verbas.

Podemos também destacar uma quarta faceta: os inúmeros interesses econômicos que se fazem presentes numa pesquisa científica. Os financiamentos, registros de patentes, criação de nichos de mercado e assim por diante.

Temos ainda uma quinta dimensão, que seria a política, onde a presença de preceitos ideológicos, junto com preconceitos da mesma estirpe, que acabam por influenciar uma pesquisa e, sem querer querendo, terminam por distorcer os seus resultados.

A sombria história da ciência está repleta dessas tranqueiras.

Por fim, temos a ciência enquanto imagem popularesca e midiática, que é aquilo que vemos retratada pela grande mídia e replicada em nossas falas no dia a dia que, gostemos ou não, nada tem que ver com as facetas anteriores. A ciência, nessa última acepção, não passa dum lugar comum sem significação substancial alguma.

Vejam, essas seis dimensões apontadas acima existem, estão presentes no dia a dia da prática de qualquer ciência. De qualquer uma.

Aí, diante do exposto, penso que caberia duas perguntas: quando evocamos a palavra ciência para justificar uma predileção nossa por certas respostas nós levamos tudo isso em consideração ou não? Quando, numa conversa banal, num boteco ou nas redes sociais, invocamos a “autoridade científica” estamos, de fato, levando em consideração as múltiplas faces da prática científica ou apenas usando uma imagem bonitinha, mas ordinária, para parecermos mais sabidos que os demais?

Não vale mentir para si mesmo. Até podemos, mas não vale.

Abre parêntese. Me permitam uma dica: considere os juízos emitidos pelos representantes da OMS frente essas seis dimensões indicadas, pondere sobre o gabarito científico de prefeitos, governadores, secretários e ministros de Estado que falam em nome da ciência, à luz dessas seis perspectivas. Faça isso e matute um pouco sobre essa encrenca. Fecha parêntese.

Pois é. Por isso sempre acho muito engraçado quando vejo alguém falar que está agindo de acordo com “a ciência”. Dá a impressão que ela, a ciência, é um ser onisciente, o oráculo dos oráculos, coisa que ela não é e nem pode ser.

De mais a mais, vale lembrar que ninguém consulta a ciência. Ninguém. Nós podemos consultar um e outro cientista, através de seus trabalhos, que tem um e outro ponto de vista sobre um determinado problema que nos aflige e, através desses pontos de vista divergentes, confrontados com a realidade dos fatos, podemos tomar uma decisão que poderá ser exitosa ou não; que poderá ser justa ou injusta, moral ou imoral e isso tudo, meu caro Watson, não depende de ciência alguma. Depende da consciência de cada um de nós.

Por fim penso que depois desse papo todo seria mais do que recomendado que tomemos uma boa xícara de café. Digo isso não por ser algo cientificamente comprovado. Não. É apenas uma deliciosa obviedade da vida que merece ser respeitada, como muitas outras que fazem parte da nossa vida.

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela, em 26 de maio de 2020, dia de São Felipe Néri.

  

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