Muito se tem falado sobre uma volta ao normal, após os tempos tenebrosos e incertos que estamos atravessando. Mas, para voltarmos “ao normal”, tudo precisa voltar exatamente a ser como antes da pandemia? Assim, bem como era, idêntico, tudinho do mesmo jeito? Li um dia desses um artigo da psicóloga Jennifer Delgado, originalmente publicado pelo Rincón de la Psicología (https://rinconpsicologia.com/psicologa-jennifer-delgado/), que me chamou muito a atenção.

Esse artigo versa especialmente sobre a questão do consumo, ou melhor colocando, do consumismo do nosso mundo dito “normal”. Nele, a autora fala sobre o Gaslighting, uma forma de manipulação que nos faz duvidar de nossa própria, para que “aceitemos a realidade, opinião e perspectiva que nos deseja impor o manipulador”. Segundo ela, este não é um fenômeno novo, e já em 1984, o autor George Orwell havia feito referência a essa busca por reescrever a História e falsificar fatos, conforme a conveniência do sistema. O objetivo, numa interpretação correlata ao tema deste texto, seria fazer o mundo “normal” (criado pelo sistema capitalista para ser lucrativo) parecer o único correto, levando as pessoas a mergulhar no consumismo, na ostentação e numa supervalorização daquilo que é lucrativo, em detrimento de valores humanos mais simples, que não envolvem o dinheiro e as posses.

O que me deixou bastante intrigado foi a afirmação da autora de que, neste momento por nós vivido, onde o mundo dito “normal” sofre um abalo de proporções históricas e inimagináveis (se desnuda, mostra seus defeitos escondidos pela propaganda), começaremos a ser bombardeados pelo tal “Gaslighting “. Para quê? Para nos levar a abrir nossas portas. Segundo ela, forças diferentes tentarão nos convencer de que devemos voltar ao normal. Vão nos dizer que não há razão para temer – ou pelo menos não tanto. (…) Milhões serão gastos em publicidade para que possamos nos sentirmos confortáveis ​​novamente – com o conforto que advém da ignorância motivada. Veremos anúncios em todos os formatos e em todos os sites com uma única promessa: retornar à normalidade.

É óbvio que em algum momento essa pandemia há de passar, e torcemos para isso, rezamos, nos enchemos de esperança. Um remédio, uma vacina, imunidade natural, alguma coisa há de nos tirar dessa situação. Todos queremos isso com todas as nossas forças. Mas, e quanto ao “voltar ao normal”? Que normal é esse que tanto querem que voltemos? Nota-se que não há tanta necessidade de consumir. Nem de ostentar, mostrar, gastar. Temos ficado em casa mais tempo, nos vestimos de forma mais simples, consumos alimentos mais caseiros, silenciamos mais. E será que estamos, aquilo de que abrimos mão, tem feito assim tanta falta?

O sistema de consumo se sente na “obrigação de colaborar para nos resgatar” para nos ajudar a apagar o sentimento de ansiedade que foi estabelecido, para que nos sintamos imortais novamente, voltemos à vida que tínhamos antes da crise, nos permitimos recuperar as velhas rotinas e nos fazer esquecer a tragédia. A autora cita ainda o professor Noam Chomsky, para demonstrar que, há cerca de um século atrás, quando a indústria percebeu que não seria fácil controlar uma população com o uso da força, eles tiveram que encontrar outros meios para controlar as pessoas. E então “eles entenderam que era mais fácil criar consumidores do que subjugar escravos “. E agora podem perder tais escravos do consumo, e isso não é bom (para eles). Sabem que um consumidor consciente, aquele que pensa e se encarrega de sua vida, não é um bom consumidor (para eles).

E é por isso que ele precisa fazer todo o possível e impossível para esquecermos o sentimento de vulnerabilidade e o indício de mortalidade que essa crise gerou e que nos forçou a refletir sobre coisas mais importantes do que a marca de sapatos que usamos ou o modelo de smartphone que temos no bolso. Ou seja, o tal “normal” que nos fazem crer que devemos desejar novamente é o consumismo desenfreado, a continuidade da sociedade que se apoia no ato de consumir. Aliás, a sociedade que mede as pessoas e as valora de acordo com suas posses, os valores na conta, o ano do carro, o preço do celular que ostenta. Não pelas suas qualidades humanas de fato ou por suas relações com outros humanos serem positivas e justas. Até mesmo a religião muitas vezes separa mais do que une, julga mais do que acolhe, num mundo onde somos aquilo que temos, valemos aquilo que podemos comprar, e as aparências falam mais alto que a realidade.

Delgado nos diz que o sistema de consumo fará todo o possível para retornar ao normal antigo. Ele quer que compremos novamente, que deixemos de pensar. Que corremos novamente para comprar coisas que não precisamos. Que possamos nos trancar em nossa bolha novamente, com muita pressa para nos preocupar com os outros.

Agora me diz: é para esse normal que devemos retornar de fato? Não é chegada a hora de respirar fundo e se perguntar o que você realmente quer fazer com sua vida? O que estávamos fazendo dessa dádiva que é a vida? O que estávamos valorizando demais, e o que estávamos deixando de perceber e de gozar nesta vida? Quais valores estão nos controlando até então? Não há nada de bom no momento que vivemos, mas dele podemos tirar sim lições.  A que “novo normal” você deseja retornar? Estamos diante de uma oportunidade única de redefinir tudo!

Voltaremos a nos embriagar com “compras”, com a velha forma de acompanhar o “futebolzinho de domingo, as postagens que mostram momentos menos vividos e mais publicados? Ainda seremos os velhos robôs, comprando o celular do último modelo sempre que alguém comprar outro, apenas para não ficar para trás, nos preocupando mais em postar uma foto do que em viver um momento? Ainda enxergaremos mais a roupa, o relógio, os calçados e a maquiagem, do que a pessoa que ali está?

Ainda vamos preferir ter, comprar, possuir, mostrar, em vez de ser, estar, viver? Quanto não terão a mesma chance de retomar as amizades, a convivência com um ente querido que se foi? Quantos não poderão fazer essa reflexão, e tentar um “novo normal”? Se eu e você tivermos essa chance, seria bem propício aproveitá-la, creio eu.

José Carlos Correia Filho – professor de História. #SePuderFiqueEmCAsa  #Cuide-se

 

 

 

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