Todos nós conhecemos, mesmo que seja por meio duma única lambida livresca, o drama vivido pelo filósofo grego Sócrates em seu julgamento. Pois bem, mas não é a respeito disso que pretendo escrevinhar. É sobre o mito da caverna, que nos é narrado por Platão, seu mais conhecido e brilhante discípulo, na obra “A República”, livro VII, que pretendemos dizer alguma coisinha.

Sobre esse causo filosófico, creio eu que, também, todos temos uma clara visão do que se trata; mesmo assim, peço licença ao amigo leitor para rabiscar alguns comentários sobre o dito cujo, por ocasião do tempo do advento.

A protagonista do causo platônico não tem nome algum porque, ao seu modo, somos nós; cada um de nós. Gostemos ou não de admitir, vivemos de modo similar as personagens dessa alegoria: agrilhoados numa caverna que, ao mesmo tempo, limita nossa visão da realidade e apresenta-se como se fosse à totalidade do real.

Lá estamos nós, juntos e misturados, num mundo de aparências que toma forma em nossa mente pelo intermédio de impressões fragmentárias que passam a se cristalizar na feição de ideologias, pré-conceitos, cacoetes mentais, expressões não significativas, jogos linguísticos, jargões e tutti quanti.

O que na primavera da história era chamado por Platão de caverna, hoje, por nós é nominado como bolha. Uma metáfora ruim, diga-se de passagem, boba mesmo, pois uma bolha, por definição se desfaz com grande facilidade e, ao que parece, não é o que ocorre com frequência. Por isso, apesar de vivermos numa era modernosa, o termo caverna descreve com mais precisão o triste fenômeno que hoje vivemos.

De mais a mais, quem diria que o aumento do fluxo de informação, quem diria que o fácil acesso a uma multiplicidade de fontes de saber acabaria gerando, como uma espécie de “dano colateral”, o isolamento de inúmeras pessoas em “cavernas digitais” que, ao seu modo, passa a ser uma espécie de filtro por meio do qual se vê, de maneira distorcida e mutilada, a realidade.

Na verdade, muitos apontavam para essa possibilidade e, muitos outros, ainda hoje, nos chamam a atenção para outros desdobramentos prováveis dessa encrenca cibernética em que estamos metidos, mas isso seria ponto para outra prosa. Não para agora.

O fato é que em todas as épocas a humanidade viveu em cavernas existenciais e, em todas elas, haviam aqueles que saiam das ditas cujas e vislumbravam a totalidade do real; e voltavam para comunicar isso aos seus iguais no vão esforço de libertá-los.

Hoje, o babado é um pouco diferente. Todos nós, de modo similar aos nossos antepassados, vivemos agrilhoados em nossas bolhas cavernosas, porém, ao invés de termos sábios e santos para nos comunicar o que há para além de nosso limitado horizonte de percepção, temos uma multidão de doidos, que se apresentam como iluminados, ou algo que o valha, declarando que a sua bolha seria a única realidade que há. Que sua bola seria a realidade.

Aí compadre, o boi vai com tudo para o brejo. Não tem jeito.

Não que esse tipo de maluquice não existisse antes do advento do século XXI. Claro que existia. Mas, ao que me parece, não na proporção que hoje testemunhamos.

Um dos fatores que contribuiu muitíssimo para esse estado fecal é essa sensação de “eterno presente” que é simulado pelas mídias digitais.

Da mesma forma que as fotografias não mais documentam nossas rugas e pés de galinha, nossos olhos fixam-se, narcisicamente, ao que nos é transmitido, sobre o que está acontecendo no último momento, como se a única coisa que realmente importe-se fosse nossa predileção rasteira pelas mesquinharias do dia a dia; predileção essa, deformada por nosso incansável e insaciável imediatismo bufo.

Sim, nos conectamos com todos, mas não nos comunicamos com praticamente ninguém.

Voltemos para a antiguidade: esse drama universal, narrado de modo luminoso por Platão, pode ser tido como uma prefiguração do drama que fora vivido em Belém, onde, numa gruta, o Verbo divino se fez carne e habitou entre nós; onde a luz da Verdade se compadeceu de nos outros e veio alumiar a caverna de nossas vidas e estará, até o final dos temos, apontando para alto, para a saída dessa prisão de vultos e sombras que é esse simulacro que chamamos de “nossa realidade”, que é fomentado pelo pecado enraizado em nosso coração e estimulado pelos mundanos subterfúgios modernosos.

Sim, a luz, que é Cristo Nosso Senhor, veio até a caverna em que a humanidade vive e, todos nós, sabemos muito bem o que fizemos com Ele, que é o Caminho, a Verdade e a Vida que estão para além de nossa vaidade e soberba.

Mas não foi o que o filósofo grego São Clemente de Alexandria fez. Não. Ele, quando conheceu a mensagem cristã, se converteu de pronto, dizendo que encontrou Aquele que há tanto tempo estava procurando. Dizia São Clemente que a filosofia é [e deve ser] a pedagoga que nos guia até o Cristo que é a Sabedoria divina encarnada.

Todavia, diante do cenário caótico em que vivemos na atualidade, onde inúmeras pessoas [diplomadas ou não] vivem dizendo, de boca cheia, que não existe essa tal de Verdade, que cada um tem a sua “verdade pessoal e subjetiva” e que, por isso, tais pessoas creem que sua bolha seria o caminho e a vida, e que, cada um deveria segui-la, isolando-se nas sombras de seu mundinho, distante de tudo que, porventura, possa abalar os alicerces de sua fantasia existencial.

Não é preciso dizer, mas o farei mesmo assim: uma vida vivida nessas bases é uma existência pra lá de frágil. De geleia mesmo.

Não é à toa que não são poucos os que reagem histericamente, com pitis de criticidade ofendida, quando algo toca, mesmo que levemente, as bases de seu castelo de cartas marcadas.

É o desespero frente à possibilidade de ter de reconhecer que viveu crendo numa ilusão, que foi feito de bobo praticamente a vida toda, imaginando que era alguém que pairava acima de toda e qualquer alienação, mas que, na realidade, não passava de apenas mais um alienado.

Enfim, seja como for, sair da caverna, ou da bolha, não é uma tarefa fácil. Nunca foi e nunca será. Mas a Luz, que é Cristo, está entre nós há dois milênios, convidando-nos para largarmos pra lá o pesado fardo de nossa vaidade e soberba, de nossas ideologias e mesquinharias, para segui-Lo, abraçando nossa cruz de cada dia.

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela, em 08 de dezembro de 2019, solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Maria.

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