Por Bruno Zampier (*)

A Constituição Federal estabelece em seu artigo 196 que “a saúde é um direito de todos e um dever do Estado”.

Mas é ingenuidade acreditar que se trata de um bom negócio impor ao governo o dever de garantir nossa saúde. É que, para cumprir essa tão nobre missão, o Estado se lançará em uma verdadeira batalha contra a liberdade, transformando nossa vida em um inferno. Pois neste dispositivo a classe política encontra a justificativa para nos impor uma série de ônus.

E antes que alguém diga que se trata de um mal necessário para proteger os mais pobres, advertimos: contenha um pouco sua cândida bondade e descubra que o direito à saúde na verdade é um dos fatores que contribuem para a miséria do povo. Não é assim que se faz caridade. Vamos lá.

Em primeiro lugar, de onde vem o dinheiro para manter o Sistema Único de Saúde (SUS)? A própria Constituição Federal estabelece que a manutenção do sistema de saúde ficará sob responsabilidade concorrente da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Isto significa que uma parcela dos tributos arrecadados por esses entes federativos será destinada a criar e manter postos de saúde, hospitais e assim por diante.

Quais tributos? Pois bem… poderíamos dizer que se trata de uma Legião de Tributos, pois são muitos, parafraseando a resposta dos demônios que respondiam a Cristo quais eram seus nomes. Mas fique tranqüilo, pois essa legião infernal de tributos tem por nobre missão  garantir seu bem-estar em caso de doenças e acidentes. Citamos alguns dos que infestam nossa vida diária.

Em âmbito federal: IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados); IR (Imposto sobre a Renda); IOF (Imposto sobre Operações Financeiras); II (Imposto sobre a Importação); IE (Importo sobre a Exportação). Em âmbito estadual: ICMS (Imposto sobre Circulação de Produtos e Mercadorias); Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA); ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis). Em âmbito municipal: Imposto sobre a Propriedade predial Territorial Urbana (IPTU); Imposto sobre Transmissão Inter Vivos (ITBI); Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS). Mas estes são só alguns. Não citamos todos para não cansar o leitor. Contra eles, nem exorcismo resolve.

Mas não são apenas os impostos que mantém o sistema de saúde. Lembre-se que antes de pagá-los, o governo já havia embolsado 8% do teu salário, descontado em folha para compor o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço). Trata-se de uma espécie de poupança compulsória, uma parcela do teu salário sobre a qual você não tem autoridade para decidir como usar. Esse valor poderá ser sacado em algumas hipóteses. Claro que é o governo quem decide quais são essas hipóteses e como você deverá comprová-las.

Por exemplo, você pode sacar o valor caso seja infectado com Aids, desenvolva Neoplasia Maligna ou estiver em estágio terminal decorrente de qualquer outra doença. Nesses casos – observe-se que na iminência da morte -, caso queira sacar o FGTS, você deverá cumprir uma “pequena” burocracia, apresentando os seguintes documentos: Documento de identificação; Carteira de Trabalho; Número de inscrição PIS/PASEP/NIS; Atestado médico contendo diagnóstico médico, claramente descritivo que, em face dos sintomas e do histórico patológico, caracterize estágio terminal de vida, em razão de doença grave consignada no CID, que tenha acometido o titular da conta vinculada do FGTS ou seu dependente, assinatura e carimbo com o nome/CRM do médico que assiste o paciente, indicando expressamente que o paciente se encontra em estágio terminal de vida.

Mas calma porque ainda não acabamos. O governo é criativo. Além de tributos e descontos compulsórios na tua folha de pagamento, ainda existem multas que podem ser aplicadas para te educar em matéria de saúde. Claro, mais uma vez a classe política, dotada de amor paternal por todos nós, aplicará uma punição com a finalidade de nos tornar pessoas mais responsáveis.

Por exemplo, você já pensou sobre o motivo pelo qual o governo aplicará uma multa caso você esteja dirigindo sem cinto de segurança? Sim, é para te educar em matéria de segurança e preservação da sua própria integridade física. E veja que se trata de uma conduta que não expõe ninguém mais a risco. Portanto, o governo está te protegendo de você mesmo, da tua própria irresponsabilidade.

Alguns ainda dizem que em caso de acidente você será socorrido pela rede pública de saúde e portanto vai gerar uma despesa que poderia ser evitada, então é justo que pague. Perfeito, o direito à saúde acabou de justificar um ataque ao seu bolso, mesmo que não exista acidente algum.

No caso, a multa é de R$ 195,23, mais cinco pontos na CNH. Lembrando que ao somar 20 pontos você tem sua carteira suspensa e será obrigado a fazer um curso de reciclagem no Detran. Se a sua carteira é habilitada para dirigir ônibus e caminhões profissionalmente então bastam 14 pontos (equivalente a 3 multas por dirigir sem cinto). Em alguns estados, como São Paulo, o curso é gratuito, mas em outros é pago. No Rio Grande do Sul são R$ 37,14 pelo exame teórico e R$ 8,07 o valor da hora aula.

Se você for motociclista, o governo estará ainda mais preocupado com a sua segurança. E claro, também não quer que os gastos com a tua recuperação nos hospitais da rede pública sejam muito altos em caso de acidente. Se você conduzir sua moto sem capacete, a multa é de R$ 293,47 e suspensão automática da CNH. Mais curso de reciclagem, claro. Você precisa ser reeducado. Se você estiver com a viseira levantada, a multa é de R$ 191,00 mais sete pontos na carteira: o governo preocupa-se em preservar a integridade do seu rosto e para isso está te educando. Agradeça.

Ah, e não esqueçamos de pagar o DPVAT, o seguro obrigatório pago todo ano por todos os proprietários de veículos. Em geral, para os carros o valor é de R$ 42,00, pagos após uma burocracia monumental, como por exemplo levar o veículo para vistoria no Detran. Se você levar num despachante, vai pagar mais. Se você tem uma moto, você também paga mais, afinal os índices de acidentes com motos são maiores: R$ 180,65, mesmo que você jamais tenha se envolvido em um acidente.

Uma parte de todo esse valor arrecadado (45%) mais uma vez vai financiar o SUS. No caso de acidente, você terá direito a sacar um valor fixo definido em lei: R$ 2.700,00 (na hipótese de comprovadas despesas médicas e hospitalares); e até R$ 13.500,00 (na hipótese de invalidez permanente ou morte). Observe-se que um amante das motos que pague anualmente o DPVAT por vinte anos, acabará despendendo um valor mais alto (R$ 3.600,00) do que o valor da primeira indenização. Lembre que o prazo prescricional é de três anos e uma vez perdido, você não terá mais direto aos valores. Aliás, se você possui carro há décadas e nunca se envolveu num acidente, não terá qualquer direito ao ressarcimento dos valores investidos em DPVAT. Você paga para quem se acidenta, para o motorista imprudente e para o embriagado que provoca colisões. Solidariedade e caridade cristã do Estado com o teu dinheiro. Amém!

Se o leitor acha que isso já seria suficiente para que o governo cumprisse sua nobre missão de honrar seu dever para com a nossa saúde, saiba que ainda tem mais. É que muitos alimentos podem nos prejudicar. Ora, é dever do Estado cuidar da nossa papinha, digo, da nossa comida. Excesso de sal e açúcar por exemplo é ruim, pois aumentam os índices de diabéticos e hipertensos.

Pensando nisso, alguns estados agora impõem multas para restaurantes que deixarem sal sobre as mesas, à disposição dos clientes. No caso, a multa para o estabelecimento é de R$ 1.343,55. Não tempere sua salada e coma batata frita sem sal. Nada de colocar muito açúcar no seu suco, hein? Mas este é apenas um exemplo. Existem outros. Saiba que a receita de embutidos como lingüiças e salames também é regulada por lei: nada de muito sal.

Portanto, além de colocar a mão no teu salário, incrementar o preço de tudo aquilo que você adquire através de tributos municipais, estaduais e federais, fiscalizar o seu cinto de segurança e a viseira do teu capacete, o governo também controla o jeito que você tempera a alface, adoça o suquinho de laranja e prepara a feijoada no domingo.

Depois de arcar com tais despesas, você deveria encontrar um sistema de saúde semelhante ao Reino da Dinamarca, não é mesmo?. Acreditamos ser desnecessário discorrer aqui sobre as condições gerais do SUS, que mais se assemelham ao Reino do Inferno. Portanto, junte outra parcela do seu dinheiro e pague um plano de saúde particular, caso não queira agonizar em macas nos corredores, morrer por falta de ambulância ou de bisturi na sala de cirurgia.

Poderíamos ainda discorrer sobre muitos outros problemas insolúveis envolvendo o financiamento público do sistema de saúde. Ao estabelecer o famigerado artigo 196 da Constituição Federal, o legislador não considerou outros tantos entraves:  corrupção; a burocracia criada para tentar combater a corrupção (além de ineficaz, ainda gera morosidade na aplicação dos recursos arrecadados, o que é fatal em termos de saúde… literalmente); o fato de que sendo o custeio uma responsabilidade de todos os membros da sociedade, o resultado é que quem não usa, ou usa pouco, mesmo sendo pobre, paga para os que usam. Resultado: a saúde se torna um fardo pesado para todos em múltiplos níveis. Tributos infindáveis, multas exorbitantes pelos mais insignificantes motivos, burocracias insuportáveis.

Desde o rico empresário que trabalha com importação até o caminhoneiro e o motoboy (não esqueça inclusive do DPVAT mais caro que ele paga, obrigatoriamente), todos são onerados com descontos compulsórios, multas, papelada e burocracia. Tudo isso para, no fim, o SUS continuar sucateado. Deus queira que desse sistema você nunca precise.

Por fim, lembremos de Miguel Reale que salientava que a todo direito corresponde um dever. A isto ele chamava de “bilateralidade atributiva da norma jurídica”. Explico: se existe um destinatário do direito, automaticamente existe alguém encarregado de garantir este direito. No caso da saúde, é você mesmo. 

Não existe serviço público gratuito e quem mais arca com os ônus acabam sendo os mais pobres. São eles que mais sofrem com a carga final dos tributos e dos descontos em folha, com a burocracia do FGTS, com as multas e no final, são eles que acabam morrendo nas filas do SUS. Por isso, diremos que a frase de Reale não é lá muito precisa. É preciso dizer que, na verdade, a todo direito correspondem não apenas um, mas mil e um deveres. E o peso desses deveres sempre arrebenta do lado mais fraco da corda.

(*) Bruno Zampier, mestre em Filosofia do Direito pela UFPR, especialista em Direito e Processo Penal pela ABDConst, professor de Direito Penal e Filosofia do Direito. Advogado.

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