Entre uma e outra linha nós vivemos. Entre elas existimos e somos. Essa é uma das muitas verdades que balizam nosso peregrinar por esse vale de risos, caretas e lágrimas.

Sim, todos ouvimos muitas, muitíssimas pessoas falarem nas salas de aula e, inclusive, nos botecos que nos acolhem nas horas faceiras, que devemos aprender a ler as tais entrelinhas. E detalhe: que devemos fazer isso criticamente, é claro.

Frente a esses dois pontos que nos são indicados, pelas mais diversas vozes, ocorrem-me algumas ideias que, me perecem, podem ter alguma valia. Se não tiverem, caríssimo leitor, valeu a companhia junto a essas palavras e linhas vadias.

Quando afirmamos que o que mais almejamos ao ler algo é saber o que está por trás das entrelinhas, tenho a impressão de que estamos, sem nos darmos conta, dizendo, de cara, que desconfiamos do escrevinhador e que vamos porque vamos descobrir o que ele está escondendo maliciosamente de nós, deixando fora do jogo qualquer preocupação em sabermos o que o abençoado tem de fato a nos dizer.

Com essas palavras não estou dizendo que não exista malícia nas páginas escritas. Não. De jeito maneira. Há muita, como há. Porém, adotarmos a desconfiança como ponto de partida não nos ajudará muito não na compreensão daquilo que um autor quer porque quer nos comunicar.

Cientes ou não, com uma atitude assim, acabamos por projetar sobre o texto, e sobre a pessoa do autor, uma quantidade de pré-conceitos muito maior do que podemos imaginar e, ao fazer isso, ao invés de vermos o mundo através dos olhos do autor, abamos por colocar as nossas lentes no lugar da visão que o escritor está a partilhar conosco e, desse modo, acabamos empobrecendo  imensamente a nossa leitura e bem como a nossa forma de ver o mundo e de encarar a vida.

Sim, ver o mundo com os próprios olhos qualquer um é capaz de fazer. Até mesmo um cachorro. Agora, quando lemos, sem nos armarmos com desconfianças mil, acabamos por ver o mundo com as meninas de nossas vistas e com os olhos dos autores que lemos e, isso sim, é fabuloso. É fabuloso porque ao cruzarmos as várias linhas traçadas pelos mais variados autores que viveram nos mais disparatados lugares do mundo, nas mais diversas épocas, com as mais estrambólicas crenças, nós acabamos por ver e compreender o que há para além das linhas tortas e entrelinhas tíbias.

De mais a mais, penso que seja interessante lembrarmos que quando agimos assim, com medo de sermos enganados, acabamos por nos enganar com maior facilidade. E não há arapuca mais difícil de ser desarmada do que aquelas que armamos para nós mesmos.

Lembremos: é muito mais difícil admitirmos que nos engambelamos do que reconhecermos que alguém nos engambelou.

E é aí, justamente nesse ponto, que entra o uso massivo e indevido do termo “crítico” para qualificar o que, muitas das vezes, não tem qualidade alguma.

Explico-me: quando dizemos para nós mesmos que somos uma “pessoa crítica” podemos, com esse dito, querer dizer muitas coisas. Muitas. Mas, em todas elas há algo subjacente: que supostamente nós não somos enganáveis como aqueles que consideramos “pessoas não-críticas” – pra não dizer alienadas.

É claro e cristalino que qualquer um pode sentir-se assim; isso é da conta de cada um. Porém, o caminho mais fácil para sermos feitos de bobo é acreditarmos que não podemos ser enganados. Ora, todo bom malandro sabe que tipos assim são grandes candidatos a otários. E o bom é que, depois de terem sido feitos de otário, jamais irão admitir isso. Todo soberbo se considerarão um espertão.

Da mesma forma que a palavra cão não morde, a termo “crítico” ou “criticidade” não torna ninguém mais inteligente ou esclarecido e, obviamente, não garante de modo algum que o seu portador irá, de fato, agir criticamente.

Resumindo o entrevero: se aceitamos que para entendermos um único livro é necessário que tenhamos lido muitos livros; se admitimos que é um pré-requisito indispensável que tenhamos absorvido e compreendido muitos pontos de vista, conflitantes e contraditórios, para iniciarmos uma apreciação crítica, nós estaremos habilitados para desconfiar que há muito mais a ser conhecido entre o céu e a terra do que imaginam os criticamente críticos com suas entrelinhas.

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela, em 28 de junho de 2020, dia de Santo Irineu Lyon.

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