Filhas do rei

O tal do respeito é algo que, aparentemente, de tempos em tempos tira umas férias, ou esconde-se atrás da Igreja para urinar, como conta-nos a velha piada popular. Pois é. Só que não é bem assim que a banda toca.

Muitas vezes, em nosso dia a dia, motivados pelas mais variadas circunstâncias, afetadamente reivindicamos o respeito que acreditamos nos ser devido e, noutras tantas, nos esquecemos de oferecer essa cortesia para os outros e, nesse vai e vem, sem muito decoro, vamos seguindo com a vida como ela é, com esse jeitão tosco.

Trocando em miúdos: não é que ele, o respeito, tirou férias ou foi se aliviar, apenas ficou em desuso por alguém, ou por nós, momentaneamente e, logo após os comerciais, ele retorna com sua programação normal.

Tudo bem, mas o que seria o tal do respeito que é tão reivindicado por nós? Seria tão só e simplesmente uma forma de deferência, de reverência que manifestamos em relação a algo ou a alguém e, por isso mesmo, que o trem se complica formidavelmente, tendo em vista que nem tudo é digno de respeito; ao menos não da mesma reverência, pois, como nos ensina o bigodudo do Nietzsche, aquele que não sabe desprezar, não sabe respeitar.

Em se falando nisso, lembrei-me duma peça de William Shakespeare. No caso é a obra Rei Lear. Logo no início da dita cuja, o rei, já bem velhinho, chamou suas filhas e perguntou para elas como cada uma o ama. Ele estava planejando dividir o seu reino entre as gurias. E é bem por isso que o caldo entornou.

Goneril e Regan dizem que amam o velho mais do que tudo na vida, que o amor delas por ele é desse e daquele tamanhão, porém, quando Cordélia é perguntada sobre seus sentimentos para com o rei, essa diz, laconicamente, que o ama como se deve amar um pai. Nem um pouco a mais, nem um tantinho a menos.

Bem, não era isso que o rei queria ouvir e, por isso, a partir daí é só desgraça, tanto para Lear como para Cordélia. Quer dizer, foi uma desgraceira só pra todos, simplesmente porque o rei queria receber de suas filhas algo que não lhe era devido.

Nós, de nossa parte, somos mais ou menos assim. Muitas vezes quando nos sentimos profundamente ofendidos com uma fala, com um meme, com qualquer coisa que seja, não paramos para refletir se realmente merecemos toda a deferência que estamos exigindo que os outros tenham para conosco, agindo de modo similar ao velho rei shakespeariano.

Não apenas isso. Há outro ponto que, pessoalmente, procuro lembrar todo santo dia e, imagino eu, que o amigo leitor também. Refiro-me a paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Velho! Se há alguém que merece todo o respeito, toda a deferência do mundo, é o Filho da Virgem Santíssima, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Merece, mas, como todos nós sabemos, recebeu o que recebeu.

Foi xingado, cuspido, humilhado, caluniado, surrado, flagelado, despojado, despido, crucificado e, no alto do madeiro da cruz, ainda foi motivo de chacota, inclusive de um dos criminosos que estava sendo executado junto com Ele e, após a sua morte, continuou sendo alvo de toda ordem de vitupérios, e segue sendo até os dias de hoje. Principalmente nos dias atuais.

Muito bem. Se Ele, que é o Filho de Deus, foi sumamente desrespeitado por todos e, inclusive, por nós, por que ficamos tão dodói da vida com um gracejo, com um meme, ou algo similar? Por um acaso somos maiores e mais dignos de consideração que Ele? Pois é. Foi o que pensou o velho Rei Lear na peça de Shakespeare. É o que nós, muitas vezes, sem pensar, fazemos também.

Por essas e por outras razões que, penso eu, é de fundamental importância que sejamos capazes de rir de nós mesmos, de não nos levarmos, assim, tão a sério. Essa é uma atitude imprescindível para que possamos encaminhar nossos passos claudicantes para a vereda da humildade, que nos fortalece e nos dignifica.

E lembremos, hoje e sempre: se tudo em nós dói é porque pouquíssimas coisas em nossa alma são sólidas, boas e dignas de apreço. Poucas mesmo.

(19/11/2020)

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela

 

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