Nossa passagem por esse mundão de Deus é efêmera. Tão passageira que, num estalar de dedos, castelos de areia são desmanchados e esquecidos, restando apenas montinhos de areia, dispersos pelo corpo da ampulheta do tempo.
Digo isso porque, neste fim de semana, no sábado, foi sepultado o nono Artêmio Zanella que, além de pai do meu pai, era meu padrinho.
Em meio à despedida, houve quem lembrasse o que havíamos apontado nas primeiras linhas dessa simplória carta, que nada, literalmente nada levamos desse mundo, por mais esforços que movamos, por maiores que sejam os fundos que tenhamos arrastado, daqui, nada levamos.
Logo após essa fala, que exala os perfumes da sabedoria do livro do Eclesiastes, meu primo, Everson Vitto, interrompeu esse dito e lembrou a todos algo que, infelizmente, esquecemos com grande frequência, mas que, jamais deveríamos ousar deixar de nos lembrar.
Ele nos lembrou que sim, nós levamos muitas coisas desse mundo, muitas, dentre elas estão o carinho e as lembranças dos amigos e o amor dos familiares. Na verdade, essa é a única coisa que cultivamos aqui neste mundo que merece ser carregada para junto da morada celeste.
Não apenas isso. Ele, meu primo, chamou a atenção de todos nós para o mar de gente que ali estava para se despedir do nosso avô. Essa multidão era o grande tesouro do nono Zanella, o testemunho vivo do grande homem que ele foi em vida; do homem singular que ele será para todo o sempre.
Após ter proferido essas lacônicas e precisas palavras, volvi meus olhos marejados para direita, e bem como para esquerda, e vi que no semblante de cada um dos presentes, amigos e parentes, fazia-se reluzir o singelo brilho de uma boa lembrança que fora vivida por eles junto com o nono Artêmio e, graças a Deus, posso lhes dizer que tenho a grata felicidade de ter em meu coração um bom punhado delas, apesar do pouco convívio.
Poderia, sem a menor cerimônia, começar a relatar um causo atrás do outro, mas não o farei, porque o número deles é, realmente, bem significativo. Bem significativo mesmo. Porém, cada um dos momentos vividos, por mais breves e singelos que tenham sido, são todos coroados com uma tal profundidade que se destacarmos um e outro, com grande clareza, veremos o quão aquilatada é a alma desse senhor que nos deixou.
Lembro-me, como se fosse ontem, das vezes que íamos para a casa do nono e, logo no comecinho da manhã, tomávamos o café com a família toda reunida para, em seguida, cada um seguir para o seu eito de trabalho no sítio. Nessas ocasiões, sentava-me ao lado do nono e sempre, sempre ele me dizia: “Dato! Nunca se esqueça de que o valor de um homem é proporcional ao amor que ele dedica ao seu trabalho. Não importa no que você trabalhe. O que interessa é que você faça o que tem que ser feito com o coração. O resto é resto”.
A lição era dita e repetida em várias ocasiões com palavras diferentes, conforme o momento, mas sempre ele procurava lembrar isso aos seus netos. Fosse ao café da manhã, ou na roça, ou quando íamos tratar os porcos, reunir o gado, podando o parreiral, ou quando simplesmente estávamos sentados à sombra de um cinamomo ao final da tarde, ele sempre procurava, de uma forma discreta e bem humorada, nos lembrar dessa verdade ululante.
Passaram-se os anos e, o nono Artêmio, acabou por se tornar o “Bizo”. Sim, ele teve a grata felicidade de conhecer seus bisnetos. E ele era um xodó com eles.
Lembro-me de uma passagem quando fomos visitá-lo e, pela primeira vez, ele iria ver minha filha mais nova, a Helena. Na ocasião, se minha memória não me trai, ela deveria ter uns dois aninhos. Um toco de gente.
No horário que chegamos o “Bizo” estava fazendo uma soneca. Era o comecinho da tarde, logo após o almoço. Então, ao invés de chegarmos todos juntos, mandamos apenas a pequena Helena ir até a varanda e bater na porta.
Ela foi e com sua mãozinha miúda bateu com força. Seu Artêmio abriu, olhou ao redor e nada viu. Voltou seus olhos para baixo e deu de cara com os olhos amendoados da bisneta que ele ainda não conhecia. Ele olhou, sorriu e disse: “Oi menininha! Quem é você?” E ela, na lata, disse: “Ué! Eu sou a Helena.” Aí aparecemos e, juntos, rimos do ocorrido.
Próximo de sua partida desta vida para a eternidade, ele pediu para que, antes de seu sepultamento, fosse tocada uma música, com gaiteiro e tudo. A música era “Meu reino encantado”, de Valdemar Reis e Vicente Machado, música que mais recentemente foi interpretada por Daniel e José Camilo.
Pedido esse que ele não deixou por escrito. Não. Ele gravou um vídeo onde manifestou sua última vontade pouco antes de viajar para além dessa vida, como ele mesmo havia dito.
Um pedido simples, de um homem simples que sempre procurou levar a vida a sério com um sorriso no rosto.
É. E esse era o seu Artêmio. Este é o nono Zanella que, neste momento, deve estar sentado num assento de fusca, coberto com um pelego, à sombra dum cinamomo na morada celeste, ao lado da nona Yolanda, olhando para o eito encerrado, que ele cultivou através da obra de sua longa vida até o último ato.
Descanse em paz nono e, obrigado por tudo.
Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela
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