Bruno Zampier

Por Bruno Zampier

Existem muitas maneiras de se passar vergonha. Uma delas é posicionar-se em matéria política de forma intransigente. O tempo se encarregará de fazer o resto. Logo os ventos mudam, trazendo circunstâncias que invertem o sentido daquilo que pode ser chamado de bom senso. Só os princípios permanecem incólumes: as pautas governamentais tem prazo de validade.

Mas direita e esquerda nos oferecem um cardápio de valores e pautas governamentais antagônicas, criando um cenário em que a tomada de posição passa a ser uma exigência inarredável. Se você acredita que a igualdade é um princípio essencial, então a sua tendência é aliar-se à esquerda, concordando que cabe ao Estado fazer a justiça onde a sociedade fracassa. Se você acredita que a liberdade é um princípio essencial, então sua tendência é aliar-se à direita, afirmando que a sociedade só precisa do Estado em hipóteses bem restritas. Mas quem é que, assumindo uma posição, já não se deparou alguma vez com uma situação em que a razão parecia mesmo estar com a ideologia adversária?

Um direitista que critica ferrenhamente o assistencialismo, caso tenha um bom coração, ficará ao menos na dúvida ao se deparar com a situação miserável e sem perspectivas de crianças órfãs vivendo em barracos na favela, enquanto uma avó cata papel na rua para, quem sabe, alimentá-las no fim do dia. O esquerdista, caso tenha bom senso, vai ficar ao menos constrangido ao ver a feminista defendendo abertamente a “abolição da família” e vai se envergonhar ao ver o seu partido apoiando e financiando sanguinárias ditaduras comunistas. O direitista que defende a extinção das leis trabalhistas vai sair de fininho ao ver os grandes empresários explorando trabalhadores miseráveis, reduzindo a qualidade de seus produtos para bater mais um recorde de lucratividade e garantir o monopólio. O esquerdista que defende a reforma agrária vai desconversar ao saber da destruição de plantações que poderiam alimentar milhares de pessoas, da morte de animais e dos lucros de muitos líderes de movimentos da reforma agrária.

Convenhamos que a dúvida é um indício, ou pelo menos, um início de bom senso. Será que não é possível reconhecer que ambos os lados dessa história possuem razão pelo menos de vez em quando? Se até mesmo relógio parado acerta duas vezes por dia, por que não podemos reconhecer que ambas as ideologias, vez ou outra, acertam na crítica e na proposta? Se refletíssemos profundamente sobre isso, talvez criássemos uma terceira via entre direita e esquerda. Que admitisse que contrapor liberdade e igualdade já é um erro porque a justiça, ora requer uma coisa, ora requer outra: a realidade concreta é complexa e não pode ser resumida a um único preceito.

Esta terceira via reconheceria que o Estado deve sim dar assistência aos necessitados, promover a Reforma Agrária, exigir que a propriedade privada cumpra um fim social, impedindo que os poderosos façam da terra – que deveria produzir o alimento – uma reserva patrimonial particular; por outro lado, essa terceira via reconheceria também que a família é que deve deter a primeira autoridade para educar e assistir seus membros, que a propriedade privada, ainda que seja grande, é fonte de riquezas para toda a sociedade quando bem utilizada. Que o rico não deve barganhar com a necessidade do empregado miserável, mas que também o Estado não deve infernizar e engessar a iniciativa privada com o pretexto de salvar os pobres.

Uma doutrina assim teria mais bom senso que Karl Marx e mais coração que Ludwig Von Misses Ayn Rand. Penso que ela estaria acima de todas essas ideologias porque não estaria antepondo princípios abstratos à realidade concreta. Dito de outra forma: ela não partiria de valores intransigentes fazendo da sociedade um fantoche para sua realização. Ela simplesmente reconheceria uma pluralidade de princípios como igualmente necessários e buscaria o melhor arranjo diante da realidade concreta da comunidade para realizá-los, sem que um destruísse o outro.

Se alguém tivesse criado esta terceira via, certamente seria um gênio maior do que os grandes pensadores da política e da economia. Obviamente não serei eu a fazê-lo. Sorte nossa, porque na verdade ela já foi pensada, escrita e batizada: chama-se “Doutrina Social da Igreja”.

Eu a descobri recentemente. Ela não foi criada por ninguém em específico, mas por uma grande quantidade de pessoas ao longo da História. Ela é composta por passagens bíblicas, textos de teólogos, filósofos e economistas menos conhecidos no meio acadêmico, mas que, ao longo dos últimos dois mil anos, produziram aquilo que, até o momento, julgo de mais coerente e equilibrado em matéria de governo da sociedade. Dela também fazem parte uma série de encíclicas papais, desde Pio IX, passando por João Paulo II até o Papa Francisco. A encíclica que a resume de forma mais clara e direta é a “Rerum Novarum” do papa Leão XIII e que eu terminei de ler semana passada. Está tudo lá: família, direito de herança e propriedade privada, livre comércio e menos impostos, junto com a assistência social, organização sindical, leis trabalhistas e função social da propriedade privada. E ela ainda finaliza consagrando a caridade como grande elemento unificador da sociedade. Ao invés de luta de classes e guerra dos sexos, cooperação e mútua assistência.

O problema é que não existe nenhum partido no mundo que assuma a Doutrina Social da Igreja como plano de governo. Talvez isso se deva à lei de oferta e procura: nós, enquanto sociedade, estamos mais interessados em empunhar bandeiras ideológicas do que em realmente aceitar a realidade e se abrir à verdade. A verdade de que a realidade é complexa e de que a justiça ora requer uma coisa, ora requer o oposto, tudo conforme a situação concreta.

E já que o assunto enredou para a religião (para decepção de alguns), incluo aqui uma verdadeira blasfêmia para os tempos modernos: também é verdade que, frequentemente, a religião está mais certa do que os nossos mais aclamados filósofos, embora ela tenha sido banida do debate público há mais de duzentos anos, com a Revolução Francesa. Este banimento não é outro radicalismo? A última moda em superstição é acreditar que a religião é só uma crença. Mas isso já seria assunto para outro artigo… Por ora, resta consignar que já não tenho dúvidas de que algo muito importante foi perdido quando os franceses resolveram decapitar freiras carmelitas, a começar pelo bom senso e pelo espírito de fraternidade e solidariedade. Como disse G. K. Chesterton: “Nós não precisamos de uma religião que esteja certa quando nós estamos certos. Nós precisamos de uma religião que esteja certa quando nós estamos errados!”.

Pois é… leia a Rerum Novarum.

 

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