por Dartagnan da Silva Zanela (*)
Uma das minhas músicas favoritas é “Stairway To Heaven” do Led Zeppelin. Gosto especialmente na interpretação que foi apresentada no Kennedy Center Honors, em 2012, onde os integrantes da banda foram homenageados. A canção foi executada por Ann e Nancy Wilson, juntamente com diversos músicos, uma orquestra e um magnífico coral. Robert Plant e os demais integrantes do Led Zeppelin assistiam a tudo e mal conseguiam segurar as lágrimas durante a apresentação. Se você não sabe do que estou falando, acesse o You Tube e confira.
Sim, eu sei, divaguei já no primeiro parágrafo. Me perdoem e sigamos em frente. O filósofo argentino José Ingenieros, em seu livro “As forças morais”, nos adverte dizendo que todo aquele que fala, o tempo todo, a respeito dos nossos direitos, sem procurar, com a mesma insistência, nos recordar dos nossos deveres, está atraiçoado a justiça e maculando a nossa alma.
Detalhe: justiça não enquanto uma instituição formatada pela letra constitucionalmente moribunda, mas enquanto o que ela é: uma virtude cardinal, que está acima de todas as togas vaidosas e além das tribunas soberbas.
Ora, como todos nós sabemos, a referida virtude é tida como sendo a rainha de todas, enquanto a prudência é considerada como sendo a mãe. Dito de outro modo, não temos como agir com justiça se não procuramos considerar com a devida prudência o que intentamos fazer, como também é verdade dizer que não há prudência alguma se não temos como finalidade a conquista da coroa da justiça.
Aliás, é muito comum vermos pessoas acovardadas ocultando sua pusilanimidade sob o manto da prudência, quando o senso de justiça se faz ausente no coração dos indivíduos.
Também podemos dizer que não é incomum vermos pessoas disfarçando a sua inclinação para a tirania com a toga da justiça, quando a prudência é sufocada pelo desejo de impor uma visão de mundo que é considerada por alguns como sendo um trem superior a todas as virtudes.
Quando voltamos às nossas vistas para o mundo contemporâneo, infelizmente, vemos boleiras de pessoas indignadas, batendo no peito, dizendo a que suas famílias, a sociedade e toda a humanidade lhes são devedoras de algo. Não são poucas as pessoas que portam-se assim, dando seu urro de protesto aos quatro ventos, do alto dos telhados e, muitas vezes, nós somos uma dessas pessoas. Por isso mesmo, podemos perguntar, na sombra e no silêncio do nosso coração: afinal, o que nós fazemos por nossas famílias, por nossa comunidade, pela sociedade e, é claro, pela humanidade, para que tudo e todos estejam nos devendo tanto?
Se realmente formos justos, diante do tribunal da nossa consciência, de forma prudente, e com a devida medida, iremos constatar, em dois palitinhos, que tudo aquilo que consideramos um rugido audacioso, não passa de uma série de ecos vindos do esgoto da grande mídia, das fossas das redes sócias, dos círculos de fofoqueiros cívicos e das rodas dos futriqueiros militantes que ficam, noite e dia, reverberando toda ordem de remorsos e rancores em seus corações para que ecoem nos átrios e ventríloquos do nosso peito.
A respeito disso, nos lembra Gustavo Corção – em uma belíssima crônica publicada nos anos 60 – que, infelizmente, nós não paramos para refletir sobre a quantidade de bens que nos são regalados por pessoas que nós, diga-se de passagem, não fazemos a menor ideia de quem sejam e, principalmente, que não teríamos como agradecer pessoalmente e, muito menos, recompensá-las.
Enquanto Corção escrevia, sempre olhava para as prateleiras com seus livros, para sua escrivaninha com seus papéis, lápis, para tudo que estava ao seu redor, que lhe trazia conforto e permitia que ele pudesse trabalhar como artífice da palavra. Coisas que, obviamente, foram pagas por ele, mas mesmo assim o deixavam na condição de devedor diante do tamanho benefício que elas lhes propiciavam.
Se voltarmos nossos olhos para os móveis da nossa casa, para os eletrodomésticos, roupas, alimentos, água encanada, remédios, filmes, livros e tudo o mais que dispomos, perceberemos que todos esses bens, que tornam nossa vida mais leve, são produzidos por pessoas desconhecidas por nós.
Não apenas isso. Nós não sabemos praticamente nada a respeito da forma como essas coisaradas são produzidas, não sabemos nada a respeito de praticamente tudo aquilo que torna a nossa vida relativamente mais confortável.
Detalhe importante: ao constatarmos isso, não estamos dizendo que não há nada para ser melhorado no mundo e, por conseguinte, em nossas vidas. O que Corção está nos chamando a atenção é para o fato de que, muitas e muitas vezes, nós não somos melhor que a sociedade que criticamos e, bem provavelmente, não conseguiríamos dar um jeito nela com nossa presunçosa [e suposta] superioridade moral de pessoas “de bem”, ou “do bem”.
É mais ou menos isso que o filme “Luta pela Fé – A História do Padre Stu” (2022), dirigido por Rosalind Ross nos chama a atenção, para essa nossa soberba inconfessável. A referida película narra a vida de Stuart Long, um boxeador que abandonou o ringue para se tornar padre, que é interpretado por Mark Wahlberg. Cada cena do filme é um convite para uma reflexão profunda a respeito da gratidão e da sua relação estreita com a justiça e a prudência e, é claro, não tem como não chorarmos um tantão e, por isso mesmo, é uma ótima oportunidade para revermos nossos conceitos, ou a falta deles.
Desculpem-me, mais uma vez, pela divagação. Voltemos ao ponto.
Bem, e se não podemos fazer isso, retribuir a todos aqueles que somos devedores, podemos tentar ser generosos para com todos os outros, além da medida do nosso senso de gratidão.
Na verdade, é mais ou menos isso que o Leão XIII, em sua Encíclica RERUM NOVARUM nos convida a realizar, com base no princípio da subsidiariedade que, em resumidas contas, nos lembra que quem melhor pode resolver um problema é aquele que está mais próximo daqueles que sofrem com ele.
E vejam só como são as coisas. Quando alguém tem a petulância de nos lembrar que a gratidão deve ter uma base mais larga do que aquela que é proporcionada pela mera indignação ideologizada, mais do que depressa, ecoa nos átrios do nosso coração, uma voz dizendo que isso tudo não passa de alienação, ou algo similar.
Oxi! Mas há alienação maior que a ingratidão? Pois é, se o nosso senso de justiça está avacalhado e a nossa prudência servilmente acovardada, é mais do que natural que cheguemos apenas e unicamente a esse tipo de conclusão que, infelizmente, apenas nos distancia da escadaria que nos eleva aos céus e nos aproxima da larga estrada da perdição.
(*) professor, escrevinhador e bebedor de café. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas. Autor de “A Bacia de Pilatos”, entre outros livros.
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