Sem dúvida alguma, um desses temas espinhosos que pode, com facilidade, nos levar a cair numa “dialética artificiosa e falaz”, é a fabricação do consenso midiático que, malandramente, se apresenta como sendo a “opinião pública”.
Ora, há muitas luas, se a cachorra da minha memória não está me pregando uma peça, Samuel Butler afirmou que o dever número um da imprensa seria instigar os seus leitores a duvidar de tudo aquilo que fosse publicado por ela e, assim deveria ser, por uma razão, que em épocas mais divertidas, parecia ser algo ululantemente óbvio: de que os formadores de opinião deveriam estimular os seus leitores a formarem as suas, como direi, próprias opiniões, e não simplesmente acatar, de forma canina, aquilo que é apresentado pelas luzes delas, da grande mídia.
E, tal empreitada, de tirar suas próprias conclusões, torna-se possível apenas quando passamos a refletir de forma sagaz e atenta a respeito de tudo que chega até nós com a forma de notícia, de “verdade” jornalística.
Pois é, mas esse tempo, se algum dia existiu, se foi de vereda. Hoje, a grande imprensa não mais vê nesse ideal algo a ser almejado, tendo em vista que grande parte dessa turma considera a crítica a sua forma tacanha de informar, não apenas um ultraje sem o menor rigor, mas também e principalmente, um ataque às instituições democráticas, uma ameaça aos poderes constituídos, ou algum outro sofisma que o valha.
Incontáveis [de]formadores de opinião, que trabalham, com sua pena e tinteiro, nas redações dos grandes órgãos de imprensa, que metem as notícias na cabeça de todos, querem porque querem que o público nutra por eles uma espécie de credulidade, digna de uma seita rasteira, que alimente por suas pessoas uma fidelidade tal que levaria, o mais devotado sabujo, a espumar na coleira de tanta inveja.
Não apenas isso. Hoje em dia, tal credulidade frente aos grandes órgãos de mídia, é tida pelas pessoas que se consideram esclarecidas, como sendo o suprassumo da criticidade. Pois é, parece piada, mas não é, infelizmente.
Chega ser bonito de se ver a galera, que se considera “superinformada”, tagarelando as últimas novidades que foram contadas, ao pé de ouvido, pelo Jornal Nacional porque, como todos sabem, essa é uma fonte de credibilidade inquestionável.
Ora, ora, se foi contado pelo Jornal Nacional e similares, no aconchego da sala de nossas casas, ao pé da televisão, junto ao sofá, é porque é verdade e não há de se questionar, não é mesmo companheiro? Não mesmo.
E pensar que nos anos 80 e 90, essa gente toda, cheia de criticidade até o tutano, não media esforços para chamar a atenção de todos para a forma maliciosa como funcionava a grande mídia. E, na época, eles estavam certos em fazer isso.
Aliás, quem aqui lembra do documentário “Muito além do cidadão Kane”? Quem assistiu essa birosca que foi lançada em 1993? Quem?
Bem, ainda nessa época a palavra “criticidade” fazia algum sentido e, esse documentário, refletia de forma cristalina uma sincera preocupação com o poder de um canal de televisão que era capaz de, na época, obter algo em torno de 74 pontos de audiência nacional, com algumas das suas telenovelas.
Atualmente, como todos sabem, o Jornal Nacional, ainda é o telejornal com maior audiência do país e isso é muito poder, muito além do poder que Charles Foster Kane, personagem do filme de Orson Welles, de 1941, que é mencionado no título do referido documentário (1993), possuía.
Tendo isso em vista, não temos como discordar das palavras do filósofo anarquista Noam Chomsky quando este afirma que a imprensa pode causar danos terríveis não apenas a uma sociedade, mas também e principalmente a capacidade de discernimento das pessoas, fragmentando a personalidade dos indivíduos, principalmente quando torna-se [veladamente] proibido, e explicitamente desestimulado, que se questione a forma como se forma a opinião pública, digo, como se fabrica o consenso midiático em conluio com os senhores das potestades Estatais da nossa partidocracia.
Nesse sentido, podemos afirmar que tudo aquilo que é assimilado por nós como sendo uma “visão crítica” a respeito de algo, não passa de uma opinião assimilada por nós de forma irrefletida, ao pé da televisão, no mesmo horário, junto com boleiras de outras pessoas que, como nós, estão com os olhinhos grudados na tela para assimilar o comando que será dado pelos senhores da nossa consciência.
Sim, é triste, muito triste o ritmo desse bonde, mas é ele que marca o passo da sociedade presente, o passo da nossa criticidade dormente.
(*) professor, escrevinhador e bebedor de café. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas. Autor de “A Bacia de Pilatos”, entre outros livros.
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