Por Bruno Zampier
De todas as leis que compõem o ordenamento jurídico penal brasileiro, provavelmente a Lei de Crimes Hediondos, promulgada em 25 de julho de 1990, é a que apresenta a maior quantidade de bizarrices legislativas. É apenas um exemplo dentre tantos outros que poderíamos analisar, mas neste caso, chama atenção a quantidade de trapalhadas e de remendos normativos com que se tentou corrigi-las. Que a maioria dos parlamentares é completamente ignorante a respeito do ordenamento jurídico é fato notório, mas de qualquer maneira, é de se questionar por onde andam seus assessores, responsáveis pela redação e análise dos projetos de leis discutidos e aprovados pelo Congresso Nacional.
A Lei de Crimes Hediondos, já prevista na Constituição Federal de 1988, tem por objetivo impor um tratamento mais severo para aqueles crimes considerados mais graves. Este tratamento mais severo, diga-se de passagem, inclui, por exemplo, a proibição de concessão de anistia, graça, indulto e fiança; também exige o cumprimento de um tempo maior de pena para fins de progressão de regime prisional e concessão de livramento condicional. Mesmo o leitor não letrado em Direito, provavelmente saberia mencionar pelo menos meia dúzia de crimes que bem poderiam receber uma punição mais severa que os demais: estupro, tortura e latrocínio (roubo seguido de morte), certamente estariam entre eles.
Ocorre que, quando promulgada em 1990, a lei se “esqueceu” de incluir como hediondo, o crime de homicídio qualificado. Sim, o crime mais grave contra a vida foi deixado de fora da lista inicial. Não esqueceu o legislador, entretanto, de incluir extorsão mediante seqüestro e o envenenamento de água potável com resultado morte. Coloquemos isso num exemplo prático: para o legislador de 1990, um homicídio qualificado, em que o criminoso torturasse a vítima com crueldade até a morte, não seria hediondo. Mas se a seqüestrasse e exigisse pagamento de resgate, aí sim, “hediondo”.
Foi apenas em 1994, após ampla repercussão do assassinato da atriz global Daniela Perez, que o legislador resolveu inserir o homicídio qualificado no rol de crimes hediondos. Agora sim, matar uma pessoa com crueldade, queimá-la viva ou algo semelhante, era considerado tão grave quanto seqüestrá-la: “hediondo”.
Um outro equívoco é ainda mais estranho: a lista de crimes hediondos do artigo 1º da Lei 8.072/1990 só inclui crimes previstos no Código Penal, sem se referir ao Código Penal Militar. Observe-se que o Código Penal Militar prevê uma série de crimes de forma semelhante ao Código Penal comum, com a diferença de que é aplicável somente aos militares, como por exemplo, policiais militares e membros das Forças Armadas. Neste passo, também encontramos no Código Penal Militar, por exemplo, o crime de estupro. Assim, se um militar praticar estupro, responde pelo Código Penal Militar e não pelo Código Penal comum.
Era de se esperar que a punição a um militar que cometesse um crime sexual fosse ainda mais severa, tendo em vista que se trata de um agente de segurança pública que possui o dever funcional de proteger a população e não de violentá-la. Não é isso o que ocorre: a pena para o estupro, no Código Penal Militar, é menor do que aquela prevista no Código Penal comum. Como se não bastasse, uma vez que a Lei de Crimes Hediondos refere-se somente aos crimes previstos no Código Penal comum, não é possível impor o tratamento mais severo dos crimes hediondos, para crimes praticados por militares.
Isto é, o estupro praticado por militar é considerado crime comum e recebe um tratamento mais brando, enquanto que o estupro praticado por um civil é considerado hediondo e recebe tratamento mais severo. É como se o legislador estivesse afirmando que o estupro não é tão grave se for praticado por militar.
Mas estes são apenas dois equívocos dos nossos parlamentares. Provavelmente os erros da Lei de Crimes Hediondos renderiam um livro, caso fossem analisados um a um e de forma detalhada. Quem sabe eu dedique mais alguns artigos a tratar do assunto. De qualquer forma, se quiséssemos analisar todos os equívocos do legislador, de gravidade semelhante, no Código Penal, no Código de Processo Penal, na Lei de Tortura, no Estatuto da Criança e do Adolescente e demais leis especiais, certamente teríamos que escrever uma enciclopédia. No caso, uma enciclopédia que explicaria, em parte, o caos da segurança pública e as idiossincrasias dos movimentos sociais extremistas que criticam tudo, menos o que realmente importa.