Bruno Zampier

Por Bruno Zampier

A expressão “Direito Natural” ou “Lei Natural” deixou de integrar a linguagem popular antes que você nascesse. Foi há muito tempo, pelo menos dois séculos atrás. Hoje, para evitar confusões aos empregar tais expressões, é preciso emendar logo em seguida a explicação de que não se trata de um código de normas ambientais ou de uma lei sobre os direitos dos animais.

Isto não significa, no entanto, que a Lei Natural tenha sido esquecida por completo ou  que ela tenha deixado de existir. Aliás, isto seria completamente impossível. Ocorre que o seu nome foi apagado dos livros de educação básica, banido dos tribunais e substituído por outras expressões, nos acórdãos e sentenças judiciais.

Mesmo no exílio, a Lei Natural volta e meia manda lembranças. E isso vem ocorrendo cada vez com mais freqüência, principalmente quando o povo, surpreendido com alguma decisão judicial estapafúrdia (às vezes emanada do próprio Supremo Tribunal Federal), questiona atônito: “mas cadê o bom senso desses ministros?”.

Sim, o povo sente que falta algo no mundo jurídico, mas não sabe bem o quê. Não compreende por que as coisas estão na forma como estão. Tenta protestar, mas percebe que é inútil: seus argumentos são respondidos com fórmulas que também não compreende. O indivíduo leigo observa o mundo jurídico e não compreende como é que doutores e pós-doutores de beca ou gravata, cercados por livros e pomposo vocabulário, tomam decisões desequilibradas ou que até mesmo cortejam a barbárie.

Algo não faz sentido e precisa de uma explicação. Tentarei fazê-lo em uma linguagem tão simples quanto possível, neste artigo que será o primeiro de uma série de três. Nas linhas que se seguem, vou contextualizar o problema, a título introdutório. No próximo artigo, pretendo explicar como o abandono da Lei Natural instaurou a crise vivida no Direito Moderno. No terceiro e último artigo, apresentarei finalmente, o que é a Lei Natural, como o seu estudo vem renascendo nos Estados Unidos e no Brasil, e como ela poderia (e deveria) nortear nossa lei e jurisprudência.

Vamos lá.

A Lei Natural (ou Direito Natural) é um tópico dentro da Filosofia que trata dos pressupostos, princípios e critérios racionais para o estabelecimento de regras de comportamento. Mais precisamente talvez, é um tópico dentro da Filosofia do Direito. A respeito dela falavam os antigos juristas romanos antes de Cristo, aqueles que criaram as bases do nosso direito civil e que inventaram coisas como o contrato de aluguel, o usucapião, o comodato, a enfiteuse e mais uma série de institutos jurídicos que até hoje permeiam nossa vida e nossas leis. Também a Bíblia está permeada de Lei Natural, cujo resumo geral encontramos nos Dez Mandamentos.

Os antigos filósofos gregos também trataram dela de forma muito aprofundada. Platão dedicou-se ao assunto em várias obras que se tornaram marcos na história do pensamento. Aristóteles, seu discípulo, e ninguém menos que o inventor da Lógica,  também estudou, discutiu e escreveu sobre a Lei Natural. Na Era Cristã, de Santo Agostinho nos primeiros séculos da Igreja até São Tomás de Aquino, no auge da Igreja em meados do século XIII, a Lei Natural continuava a ser a base comum da moral e das leis jurídicas. E assim continuou, inclusive, mesmo após o advento da modernidade. Thomas Hobbes e John Locke, os grandes teóricos modernos da filosofia política, eram, cada um a seu modo, adeptos de pressupostos da Lei Natural.

As coisas mudaram radicalmente levando à situação atual, somente com a Revolução Francesa, a partir de 1789, quando teóricos e políticos inflamaram-se contra a idéia de uma lei natural. Basicamente, em lugar dela, e com as imposições de Napoleão Bonaparte, instaurou-se na França aquilo que chamamos de Positivismo Jurídico. O mundo seguiu a onda.

O Positivismo Jurídico baseia-se na idéia de que as leis são válidas somente na medida em que são estabelecidas pelo homem. Pode parecer uma mudança sutil demais e quase imperceptível para quem não está habituado a refletir no assunto, mas é uma mudança tão radical quanto substituir a água pela cachaça na reunião dos Alcoólatras Anônimos.  Embora possuam a mesma aparência, assim como todas as leis sempre foram escritas por homens, o fato é que sua essência, isto é, a fonte de onde ela extrai sua força, são diversas: a Lei Natural afirma que uma lei só é legítima enquanto está em harmonia com a realidade humana, tal como percebida por todos.

O Positivismo Jurídico rejeita este pressuposto, porque, para começar, rejeita a idéia de que seja possível definir com a precisão necessária, o que é a tal realidade humana. Combinado com o ideal democrático moderno, delineado pelo francês Jean-Jacques Rousseau, o positivismo então culmina na idéia de que para que uma lei seja legítima, basta que seja aprovada por um consenso geral. Mesmo que ela esteja em total desarmonia com os costumes e o entendimento da população à qual ela se dirige.

Assim, o ensino do Direito nas faculdades, a aplicação do Direito pelos juízes e a criação das leis pelos parlamentares sofreu uma mudança radical, sequer imaginada desde a criação do mundo. Em lugar de uma análise da estrutura da realidade humana e social como pressuposto para qualquer tomada de decisão, em assunto privado ou público, a modernidade optou por entronar o princípio da vontade individual como elemento legitimador da lei.

Raul Seixas dedicou versos festivos a este novo mundo, de uma “Sociedade Alternativa”, título de sua música:

Se eu quero e você quer

Tomar banho de chapéu

Ou esperar papai noel

Ou discutir Carlos Gardel

Então vá!

Faz o que tu queres

Pois é tudo da lei!

Da lei!

A idéia do “faz o que tu queres pois é tudo da lei” não é uma frase de Raul, no entanto. O rockeiro brasileiro a tirou de uma obra de Aleister Crowley, um usuário de drogas, satanista confesso que fez a cabeça dos mais diversos ídolos do universo pop. Pesquise e verá. É um verso que transforma em ditado popular, música para as massas, uma teoria política e jurídica revolucionária: não mais a racionalidade e prudência nos costumes, mas a realização dos nossos desejos, tanto quanto possíveis. Não posso perder a oportunidade de destacar que é um contraste e tanto com as últimas palavras de Maria, mencionadas na Bíbila: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2, 1-11).

Não se trata de uma conjectura despropositada ou excêntrica. Como pretendo expor no próximo artigo, a recusa pela Lei Natural na teoria política e jurídica moderna se deve ao fato de que, em último caso, ela pressupõe, implicitamente, a existência de um Deus que nos ensina o que é o melhor a ser feito em cada ato, seja na nossa vida íntima ou nas decisões de caráter público. Desde a fundação do mundo, ela limitava drasticamente o exercício do poder da classe política e judiciária. Hoje, não mais.

Portanto, no fim das contas, a promessa de liberdade democrática como justificativa para o abandono da prudência ensinada pela Lei Natural é só marketing. Continuamos oprimidos por um Estado cada vez mais inflado e pesado, com leis e decisões judiciais insensatas emanadas das altas cortes. Agora já não temos a certeza de que o Estado Democrático de Bem Estar Social que realizaria todos os nossos desejos, não é na verdade um imenso Leviatã, temperando a massa que pretende devorar.

Antes que o banquete se inicie, ao som festivo e alegre de Raul Seixas, eis que surgem alguns penetras para tentar estragar a festa. São os teóricos da chamada New Natural Law ou “Nova Lei Natural”. Eles crescem nos Estados Unidos e no Brasil. Falaremos deles nos próximos capítulos.  

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