Cada um sabe onde o seu sapato aperta e, diante do aperto dos nossos calos de cada dia, uns clamam aos céus por justiça, outros por misericórdia.
Os primeiros não sabem direito o que estão pedindo e, os segundos, não tem uma clara nação do que estão querendo.
Eita! Agora sim que melou todo o meio de campo.
Explico-me: os primeiros quando pendem por justiça esquecem-se que essa virtude cardinal [1] corresponde a aplicação do devido senso das proporções que, inevitavelmente, termina atribuindo a cada um aquilo que lhe é devido, inclusive e principalmente para nós mesmos meu irmão. Trocando em dorso (ou em qualquer outro miúdo de sua predileção), você realmente parou pra considerar o que, de fato, lhe é devido?
De mais a mais, até onde sei, o justo, no sentido bíblico da bagaça (Provérbios XXIV; 16), peca sete vezes ao dia e, nossas pessoinhas estão mui distantes de serem justas nesse sentido, não é mesmo?
Se Deus fosse aplicar a Sua justiça, aí meu amigo que o mundo acabaria de vereda [2].
Sim, sei que tem muita gente que acredita ser uma espécie de criatura imaculada, tão pura, tão pura, que imagina poder corrigir a criação e dar uns pitos em Deus por suas “divinas cagadas” e, é claro, sem se esquecer de dar aquela ensaboada naqueles irmãos que a alminha, toda purinha, não morre de amores, exigindo dos infelizes desafetos posturas e atitudes que nem mesmo ela ousa implementar em sua porca vida [3].
Enfim e em resumo, esse tipo de gente não sabe o que está pendido. Não mesmo.
E quanto àqueles que clamam por misericórdia? Bem, nesse quesito parece-me que também há um bocado de confusão, tendo em vista que se confunde com grande frequência um gesto de misericórdia com algo similar a passar a mão na cabeça e deixar as coisas como estão.
Definitivamente, isso não é misericórdia. Pelo contrário. É um gesto de grande insensibilidade. Um ato de crueldade mesmo.
Outra vez, explico-me: misericórdia significa, literalmente, abrir o coração ao miserável; e Deus, que é infinita misericórdia, abre o Seu coração para todos nós a todo o momento [4]. Ou seja: a encrenca está em nós que, miseravelmente, não estamos dispostos a abrirmo-nos para receber o que Ele está nos oferecendo.
Quando Nosso Senhor Jesus Cristo nos mostra Sua misericórdia Ele não está dizendo que não tem nada de errado com o nosso jeitão pecaminoso de ser, muito menos que Ele aceita nosso modo torto de viver, porque Ele supostamente tolera tudo. Nada disso. Isso é conversa mole do encardido.
Aliás, esse tipo de atitude é produto da mentalidade modernosa que impera nos dias atuais, não o reflexo dos ensinamentos que se fazem presentes no santo Evangelho.
A misericórdia de Deus é expressada no ato de condenar o pecado ao mesmo tempo em que se resgata o pecador de sua prisão, que é o pecado.
É isso que o Verbo divino encarnado nos ensina na passagem da mulher adúltera que seria apedrejada (João VIII; 1-11).
Recapitulemos a história: alguns fariseus queriam a justiça e, como bem sabemos, eles não sabiam o que estavam pedindo; outros e a adúltera queriam que Cristo fosse “bonzinho” e deixa-se pra lá, e estes não tinham noção nenhuma do que estavam querendo. Mas Jesus chamou a todos na chincha, inclusive e principalmente a nós, para a realidade do que Ele quer nos ensinar. Instigou-nos a examinarmos nossa consciência, a nos colocar diante do fundo insubornável de nosso ser [5], e vermos que não estamos com essa bola toda. Nenhum de nós.
Aos que queiram justiça lembrou que eles eram tão pecadores quanto a senhora e que seria apedrejada por eles. Quanto a adúltera, lembrou que ninguém, nem Ele, a condenou, apesar dela ter pecado e, por isso disse “vá e procure não pecar mais”.
O pecado foi reconhecido. Os pecados da adultera e dos presentes que estavam louquinhos para apedreja-la, foram claramente reconhecidos por cada uma das personagens que participavam da cena e todos que ali estavam foram perdoados. Foram perdoados, mas a dolorosa ferida aberta pelo dito cujo continuava presente em seus maculados corações; ferida essa que estava, a partir daquele momento, sendo tratada com o unguento da vergonha [6].
Sim, da vergonha, que é um dom dos céus. Se não nos sentimos envergonhados de nossos pecados, como iremos nos converter? Se apenas vemos o cisco no olho alheio como é que iremos nos livrar da trave que está nos nossos olhos? Se não nos envergonhamos de nossas faltas, grandes ou pequenas, se não nos emendamos [7] e, dessa forma, não nos tornamos capazes de acolher o perdão misericordioso que Deus está a todo o momento nos oferecendo [8], como poderemos tratar as nossas pustulentas feridas que estão em nossa alma?
Sem o dom da vergonha não há arrependimento sincero e, sem isso, não há conversão.
Ah! E como muitas vezes dizemos, orgulhosos, que não nos arrependemos de nada do que fizemos em nossa porca vida. Como dizemos! Dizemos isso porque nos falta o dom da vergonha. Se não nos envergonhamos de quem somos dificilmente acolheremos o gesto curativo do perdão. De mais a mais, uma vida na qual a vergonha seria apenas uma ilustre desconhecida é, com o perdão da palavra, uma vida indigna de ser vivida [9]. E coloca indigna nisso.
Enfim, é isso.
Escrevinhado em 01 de março de 2020, dia do Beato Miguel Carvalho e companheiros, de São Rosendo e Santo Albino.
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[1] JOLEVIT, Regis. Curso de filosofia. Rio de Janeiro: Editora Agir, 1965.
[2] Papa Francisco. ANGELUS. Praça de São Pedro Domingo, 17 de março de 2013. Disponível na internet: http://vatican.va/content/francesco/pt/angelus/2013/documents/papa-francesco_angelus_20130317.html
[3] SÃO JOÃO PAULO II. CARTA ENCÍCLICA DIVES IN MISERICORDIA. Disponível na internet: http://vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_30111980_dives-in-misericordia.html
[4] BENTO XVI. REGINA CAELI – Domingo da Divina Misericórdia. 30 de março de 2008. Disponível na internet: http://vatican.va/content/benedict-xvi/pt/angelus/2008/documents/hf_ben-xvi_reg_20080330.html
[5] GASSET, José Ortega y. Meditações do Quixote. São Paulo: Livro Ibero-Americano Ltda, 1967.
[6] Papa Francisco. O nome de Deus é Misericórdia – uma conversa com Andrea Tornielli. São Paulo: Editora Planeta, 2016.
[7] CARVALHO, Olavo de. Fronteira da tradição. São Paulo: Nova Stella Editorial, 1986.
[8] SÃO JOÃO XXIII. DISCURSO NA ABERTURA SOLENE DO CONCÍLIO II. Outubro de 1962. Disponível na internet: http://vatican.va/content/john-xxiii/pt/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii_spe_19621011_opening-council.html
[9] PLATÃO. Apologia de Sócrates. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1999.