Por André Vieira Saraiva de Medeiros*
A família sofreu inúmeras modificações ao longo dos anos e – por consequência do processo evolutivo – a concepção de parentalidade foi extensivamente alterada, sob influência direta da centralidade do princípio da dignidade da pessoa humana. Inicialmente, a filiação era vinculada basicamente no elemento biológico, com pouco espaço para o reconhecimento e desenvolvimento de outros vínculos.
Atualmente, entretanto, o afeto surge como elemento basilar da relação familiar, prestigiando a crença popular de que “pai é quem cria”. Reconhece-se, então, a ideia da paternidade socioafetiva, pautada não mais na ascendência genética, mas na posse de estado de filho, consubstanciada na relação duradoura do tratamento de pai e filho, na fama depositada no meio social dessa relação parental responsável e, muitas vezes, até na utilização do nome dos genitores que surgiram dessa nova relação de amor e carinho.
Com a recepção pelo nosso ordenamento jurídico de diferentes tipos de filiação (biológica, registral, socioatefiva, adoção, etc.), as famílias podem apresentar, dependendo fundamentalmente da análise casuística, multiplicidade de vínculos parentais, explicitando a atipicidade dos modelos de famílias previstos na Constituição Federal. Fica evidente, portanto, a possibilidade de convivência harmônica entre diversos vínculos parentais, sem a necessidade de exclusão ou prevalência das paternidades, seja socioafetiva ou biológica.
Tanto é verdade, que o Supremo Tribunal Federal na Repercussão Geral 622 firmou a seguinte tese: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. Confere-se, finalmente, status constitucional para os institutos da paternidade socioafetiva e da multiparentalidade. Na mesma toada, foi editado o Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça, possibilitando o reconhecimento da paternidade e maternidade socioafetiva de forma extrajudicial, vale dizer, diretamente nos Cartórios de Registro Civil.
Finalmente, à luz dos inafastáveis princípios do melhor interesse do incapaz e da dignidade da pessoa humana, a compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige proteção normativa de todas as formas pelas quais a parentalidade possa se manifestar, assegurando-se que os arranjos familiares alheios à regulamentação estatal, ainda que por omissão, tenham a devida tutela jurídica, para todos os fins de direito, a fim de prover a mais adequada e ampla legitimidade aos sujeitos envolvidos. Merecendo destaque o papel do Ministério Público em identificar e assegurar, no caso concreto, a devida proteção aos diversos vínculos parentais, assumindo, assim, seu papel constitucional de agente facilitador de atos de cidadania.
* Promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná, atualmente titular da 4ª Promotoria de Justiça da Comarca de São José dos Pinhais, com atuação em Direito de Família, Registro Público e Direito Sucessório.