A identidade de um indivíduo, segundo Michel Foucault, é sua trajetória. Conhecemos quem e o que um indivíduo é pela trajetória percorrida por ele em seu peregrinar por esse mundão bagunçado.Essa observação lacônica, feita pelo maluco filosofante francês, é deveras pertinente para o assunto que intentamos tratar nessas turvas linhas.
Com ou sem crise, a vida muitas vezes é um osso e, para um comerciante – especialmente para um prestador de serviços – a vida às vezes lhes brinda com cada ossada que é brincadeira. Uma brincadeira sem a menor graça, diga-se de passagem.Digo isso porque sou um franco admirador daqueles que fiam seus dias nessa arte. A arte de vender.Viver do comércio não é para os fracos. É uma aposta em sua ousadia – em abrir um negócio nesse triste país – e outra na honestidade e seriedade de seus possíveis clientes.
Sejamos mais claros: o caboclo utiliza suas economias para adquirir determinados produtos, contrata funcionários, paga impostos, aluga uma sala, organiza o espaço dela para bem receber e atender seus clientes, prestando-lhes um serviço de qualidade e, em alguns casos, após prestar o serviço, aquele simpático cliente que, por ele, foi tratado como um rei, lhe enrola, sem corar, para pagar pelo serviço prestado, levando-o, com isso, a perder parte do seu capital investido e, em muitos casos, levando o empreendedor a falir, junto com o seu sonho na forma dum negócio, duma pequena empresa.
Detalhe importantíssimo: todo aquele que faz isso, o faz não porque é um pobre coitado que não tem onde cair morto. Os desvalidos – de verdade – desse mundo cão, dum modo geral, não agem assim.Em regra, todo aquele que recorre a esse subterfúgio vil é, na maioria das vezes, um sujeito que simplesmente quer levar uma vida que não cabe em seu bolso e que, não está nem aí, se alguém vai amargar um prejuízo por sua tremenda falta de caráter.Infelizmente, não são poucos os casos de prejuízos causados por velhacaria. Conheço muitas pessoas que tiveram o seu empreendimento indo por água abaixo por essa razão.
Dizem eles, os comerciantes e prestadores de serviços, que o estratagema utilizado pelos velhacos é mais ou menos assim: primeiramente eles vêm sorridentes, faceiros da vida, junto ao seu estabelecimento, seja esse uma mercearia, uma lanchonete, uma lojinha de roupas, um salão de beleza, seja o que for, os velhacos vem com aquela cara lambida, pagam à vista pelos primeiros serviços prestados ou mercadorias adquiridas e, passado algum tempo, penduram os primeiros fiados, e pagam bem certinho por esses primeiros, até que possam ganhar a confiança da vítima, digo, do “pequeno empresário opressor”.
Conquistada a confiança, o velhaco segue consumindo sem pagar. Quer dizer, de vez em quando dá lá uns caraminguás para, desse modo, manter viva, no coração do empreendedor, a tal da esperança de receber tudo o que o infeliz está lhe devendo.E, caso o comerciante resolva fazer a “indecência” de cobrar o lhe é devido, o cara de pau surta, pira o cabeção, se faz de indignado, de vítima, e jura nunca mais colocar os pés naquela “espelunca” que até então lhe serviu tão bem.
Detalhe: ele faz todo esse escândalo sem, obviamente, pagar o pobre do comerciante que acaba amargando um baita prejuízo.E aí acabou a história? Não. O velhaco vai, com aquela pose de cidadão simpático até outro estabelecimento comercial e repete, mais uma vez, a mesma lorota para fazer de bobo outro empreendedor.
Outro brasileiro trabalhador.E o pior de tudo é que, quando chega o fim de ano, esses heróis anônimos tem a esperança não apenas de aumentar suas vendas e, desse modo, pagar todas as suas contas e, quem sabe, ampliar os seus negócios (ou seja: atender melhor os seus clientes). Muitos deles esperam, francamente, receber dos velhacos.É. A esperança é sempre a última que morre e, nesses casos, morre de inanição.
É nessa época que os corações de muitos pequenos e médios comerciantes ficam apertados e a bile sobe nas alturas quando veem aquele fulaninho, e aquela fulaninha, que lhes devem até os tubos, festejando e, após os festejos, tem de vê-los saírem viajar, de férias, sem pagar o que lhes é devido. E fazem isso sem a menor discrição e sem pagar o que devem.
Como dizem os populares, esses pequenos e médios empreendedores, muitíssimas vezes, trabalham para o encardido rir da cara deles.E digo eu: gente assim, que faz isso com o trabalho dos outros, com o perdão da palavra, tem uma consciência suína.
Não vale um zero à esquerda, pois, como dissemos no início dessa missiva, a identidade de cada um é a sua trajetória. E que trajetória.Enfim, essa é toda a identidade desavergonhada dum velhaco contumaz que imagina que os outros existem apenas para atender e servir aos seus caprichos.
Fim. Hora dum café devidamente pago.