Por Dartagnan da Silva Zanela (*)

QUANTO, EM 2004, MEL GIBSON lançou o filme “A Paixão de Cristo”, acabou sendo alvo de inúmeros ataques amorosamente raivosos perpetrados por alminhas que não conseguiam admitir o vislumbre duma película que procurasse mostrar a paixão de Nosso Senhor tal qual os santos evangelhos nos relatam. Para o mundo modernoso, com seu bom-mocismo artificioso, isso era e é algo inadmissível.

Após o lançamento, o Papa São João Paulo II e o Cardeal Joseph Ratzinger, atual Papa Emérito Bento XVI, disseram, respectivamente, “foi assim” e “trocaria todas as minhas homilias e meus escritos sobre a paixão de Nosso Senhor por algumas cenas do filme”. Porém, a mídia lacradora, politicamente corretíssima, viu apenas a sua pequenez orgulhosa ferida e, por isso, indignou-se com a existência do filme ao invés de tentar refletir sobre o sentido escatológico apresentado pelos santos evangelhos retratados na obra cinematográfica.

Aliás, não seria nem preciso dizer, mas o digo, que a indignação, rasa por sua própria natureza, é a própria negação do exercício da inteligência e a afirmação da infantilismo magoado. Dito isso, vamos em frente. Essa atitude pequena, ainda hoje, muito mais do que naquela não tão distante ocasião, continua fazendo-se presente no coração da sociedade contemporânea que confunde o amor próprio, todo lambuzado num emplasto de autopiedade, comiseração, hedonismo e narcisismo, com o amor que nos foi e nos é ensinado do alto do madeiro da cruz.

Reparem que toda vez que as alminhas embebidas até os gorgomilos nessa mentalidade, quando são lembradas de sua ridícula condição humana – que é a condição de todos nós – mais do que depressa, já saem indignadas e, é claro, acusando todos aqueles que ousam lembrar o óbvio ululante de serem hipócritas e tralalá. Indagam, inclusive, no mesmo tom, sobre o suposto cristianismo dessas vozes que destoam das suas.

O que – perguntam – Jesus diria a respeito de Fulano e Beltrano se ele estivesse vivo? Pois é. E, perguntam isso, imaginando ser as almas mais cândidas da face da terra sem, obviamente, flagrar-se da ridícula soberba inerente a essa atitude. Bem, talvez, imagino eu, a resposta mais contundente a esse tipo de indagação maliciosa teria sido dada pelo próprio Mel Gibson que, por ocasião do lançamento de seu filme, em 2004, foi indagado nesse tom pela imprensa chique e lacradora e ele, por sua deixa, respondeu, mais ou menos assim: quem disse que Ele está morto?

Ele ressuscitou e está vivo. Ele está vivo e, infelizmente, eu, provavelmente, sou o primeiro na fila dos responsáveis pela sua crucificação. Somos os primeiros da fila. Todos nós. Ele foi morto por nossa causa. Qualquer pecador miserável, como esse que vos escrevinha, tem a obrigação de saber disso e, dentro de minhas limitações, procuro não me esquecer dessa gritante obviedade. Porém, quando o assunto vaza para a tangente das alminhas criticamente críticas a conversa se torna bem outra, pois, ao que tudo indica, essas acreditam que Deus reprova apenas aqueles que discordam delas e de seus delírios politicamente corretos, delírios esses que defendem tudo o que é bonzinho perante os olhares midiáticos, relativistas e hedonistas do mundo contemporâneo, tamanho é seu amor próprio; tão grande é a idolatria que reina em torno da pequenez de suas paixões. Sobre esse ponto, permitam-me chamar a atenção para algumas poucas palavras de C. S. Lewis que, em seu livro OS QUATRO AMORES, nos diz que: “Todo amor humano, em seu apogeu, possui a tendência de reivindicar uma autoridade divina. Sua voz tende a soar como se fosse a vontade do próprio Deus.

Ela nos diz para não contar o custo, exige de nós um compromisso total, tenta superar todas as outras reivindicações e insinua que todo ato feito sinceramente ‘por causa do amor’ é portanto legal e meritório”. Note-se bem o que o pai da Crônicas de Nárnia está a nos dizer. Não são poucos os que confundem a palavra amor com uma simples justificativa para as suas ações. Quando amamos como Cristo nos ensinou a amar, necessariamente batemos em nosso peito, tal qual o publicano, pedindo perdão por nossas inúmeras culpas e oferecendo nossas dores para Ele.

Agora, quando amamos da forma como o mundo nos dita, atiramos todas as nossas culpas e dores nas paletas daqueles que escolhemos para ser o responsável por nossas desventuras pessoais e, fazendo isso, imaginamos ser uma nova versão, atualizada e fashion, do Cristo. Resumindo o entrevero: prova de blasfêmia maior não há que confundir o sensibilíssimo amor próprio com o amor a Deus e ao irmão. Doravante, tais observações nos fazem lembrar duma passagem duma das peças de William Shakespeare. Rei Lear, no caso. As três filhas do Rei – Goneril, Regan e Cordélia – expressam, cada uma a seu modo e de acordo com a magnitude de seus corações, a gratidão que tinham para com seu pai. As duas primeiras encheram a bola do velho, bajulando-o sem a menor cerimônia. Já a terceira, Cordélia, disse-lhe que o respeitava como uma filha deve respeitar seu pai, sem nada pôr, sem nada tirar. Aí ferrou tudo. Pobre rei.

Estava tão tomado de amor próprio que acabou por condenar e deserdar justamente aquela que realmente o amava e, assim o fez, porque o pobre homem não conseguia compreender que não há amor, nem liberdade, onde não é permitida a majestade da verdade. O rei, em sua loucura, em seu apego a sua autoimagem, foi incapaz de refletir sobre sua humana condição e é nisso que consiste todo o aspecto trágico dessa peça shakespeariana. Tragédia essa mui semelhante, em termos simbólicos, a passagem dos evangelhos que refere-se ao jovem rico (São Matheus XIX:16-30; são Marcos X:17-31 e São Lucas XVIII:18-30). Passagem a qual todos conhecemos muito bem. Quando ele, o jovem rico, pergunta ao Cristo, o que deveria fazer para ganhar o reino dos Céus, Nosso Senhor disse: “Venda tudo o que tens e dá aos pobres”.

O jovem tinha demais e era apegado demais ao que tinha, mas ele era rico de quê? O que era a sua riqueza? Vejam só a sutileza do Supremo Pedagogo. Ele poderia mandar o jovem pegar tudo o que tinha e, simplesmente, distribuir aos pobres. Mas não. Ele mandou que o rapaz, primeiro, vendesse tudo, para depois, e somente depois disso, desse tudo aos pobres. Ora, quando vamos vender qualquer coisa que seja nossa temos de fazer uma avaliação do valor daquilo que possuímos, não é mesmo? Pois é, quando Nosso Senhor sugere que o jovem fizesse isso ele foi obrigado a se autoavaliar, a refletir sobre o seu real valor e, possivelmente, acabou vendo que não valia tanto quanto imaginava valer, de modo similar ao caso do Rei Lear.

Nós, de nossa parte, também somos como as duas personagens, o jovem rico e o rei shakespeariano. Amamos muito aquilo que está em nosso coração, o nosso tesouro (Matheus VI: 21) e, tomados por nossa vaidade, imaginamos que sejam as coisas mais preciosas de todos os mundos, porque nunca paramos para avaliar o seu real valor e, quando somos convidados a fazê-lo, entristecemos ou revoltamo-nos com a possibilidade de termos de contar para nós mesmos a verdade sobre nós. Somos obrigados a encarar de frente a miudeza do nosso amor próprio que tanto idolatramos.

Por fim, penso que a paixão de Nosso Senhor é profundamente didática quanto a isso, pois segue a mesma senda indicada pelos dois exemplos anteriores. Explico-me e termino: se, ao vermos os sofrimentos do Verbo divino que se fez carne, nos flagramos do tamanho de nossa pequenez é porque, bem provavelmente, estamos aprendendo e crescendo em verdade no nosso peregrinar por esse vale de lágrimas. Agora, se ao sermos apresentados à paixão, imaginarmos que nossas humanas dores são como as de Jesus e, por isso, cremos que somos uma espécie de “novo cristo das multidões” é porque, bem provavelmente, estaríamos em meio e junto à multidão que escarneceu Dele no caminho ao monte Calvário ou fazendo coro com os críticos, criticamente críticos que, após verem o filme de Mel Gibson, foram e são apenas capazes de enxergar o que, em seu entendimento, seria apenas e tão só um desnecessário espetáculo sadomasoquista.

Provavelmente, tais almas não entendam que o cristianismo, enquanto uma dádiva de Nosso Senhor, existe para nos auxiliar em nossas debilidades espirituais, para nos salvar de nós mesmos, do mundo e do demônio; não entendem e, talvez, não queiram entender, que o cristianismo não é um discurso bem arranjado, agradável aos nossos ouvidos mundanamente sensíveis, para justificar nossas fraquezas demasiadamente humanas que tanto amamos. Por fim e por isso que o fardo de Nosso Senhor é suave e, o nosso, sem Ele, tão pesado. Agora chega. Hora do café. Preto e com um cadinho de açúcar.

(*) Apenas um caipira bebedor de café.

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