Porque os deuses também morrem e são devorados

 Prof. Dr. Manuel Moreira da Silva

Departamento de Filosofia, UNICENTRO

Ao ocaso do mundo, do homem e de Deus como representações sucede o novo início da natureza, do humano e do divino em sua experiência concreta. O cosmológico, o antropológico e o teológico cedem, pois, lugar ao cosmofágico, ao antropofágico e ao teofágico; portanto, à devoração daqueles e, com isso, ao restabelecimento ou ao despertar do tempo originário. O tempo em que – retornados à vida – a natureza, o humano e o divino podem mais uma vez encantar o mundo.

Encantar o mundo é concebê-lo como função dos deuses, que ao submeterem os humanos a si são a estes submetidos. Os humanos buscam o sentido de ser ou, a rigor, viver: devoram-se a si mesmos e aos seus deuses; assim como estes, inversamente. Isso porque não é plausível viver sem morrer, os próprios gregos já não se perguntavam se viver não é morrer e se morrer não é viver? Inclusive os deuses morrem, ainda que alguns, em certo sentido, sobrevivam à sua própria morte ou renasçam sob outra forma. A tragédia divina não é melhor nem pior que a humana; cada qual a seu modo, deuses e homens morrem e são assim devorados.

O trágico da existência é justamente isso: viver na plenitude sabendo-se um com a morte. A esta não se pode vencer; pode-se, através dela, nela e com ela, aceder ao eterno, ao assim chamado divino, mais que às suas condições: à eternidade ou à divindade. Deuses e homens, seres divinos e seres humanos participam, ainda que distintamente, de um e mesmo ciclo de vida; ou antes, de um e mesmo ciclo da vida propriamente dito. Não obstante, enquanto os humanos ignoram por completo o que a eles é ou está destinado, aqueles concebem tal destino como a si mesmos. Eis a razão de viverem plenamente sua morte e morrerem sua vida na plenitude que os conforma, quando, na falta de algo que possa explicar ou dar sentido a seus atos e às suas atitudes, os humanos a isso denominam loucura divina. Essa a loucura da qual originara-se a filosofia.

Mais que aprender a morrer, filosofar é aprender a viver a própria morte e morrer a própria vida; em suma, alimentar-se ou nutrir-se da própria espécie. Para humanos e divinos, isso quer dizer que ser filósofo ou sábio é ser, respectivamente, antropófago ou teófago: ter por víveres a si mesmos e a seu outro; não só os indivíduos ou os deuses em sua singularidade, mas a espécie mesma, a humana e a divina, o real e seu duplo, ambas se devorando de modo recíproco. Essa a vida em seu sentido próprio e também a morte, algo presente em toda a existência até aqui.

(Continua…)

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