A folha de papel não tinha nada demais.

Fora arrancada do caderno que tinham à mão, aquele que estava com eles todo o tempo.

Cheio de “orelhas de burro”, amassado, riscado, com a cara de quem já devia ter sido aposentado.

Mas era aquele o único conjunto de folhas presente.

Elas fariam parte da história.

Começaram escrever na primeira que fora arrancada:

*Esta folha, a partir desse instante, torna-se um documento.

Pararam, se olharam:

*Mas é claro que se torna um documento. Vamos assinar no final e, antes de assinarmos, vamos escrever assim:

“Declaro ser verdadeiro tudo o que aqui se encontra e comprometo-me a cumprir cada um dos itens em qualquer tempo e lugar em que os mesmos forem reivindicados.”

Escreveram a última frase antes da primeira, afinal, sabiam a que desejavam se comprometer.

O “miolo” do compromisso já estava bem claro em suas mentes, precisavam apenas formalizar.

E, depois dessa última frase, não arrancaram mais folhas do velho caderno:

*Daqui a pouco vai ter um monte de folhas voando e não vamos entender mais nada. Vamos deixar no caderno mesmo.

Quando começaram a conversar, o sol acabara de começar seu trajeto pelo céu.

Estava fresco.

Os pássaros recebiam o dia.

Não viram o tempo passar e, quando se deram conta, o sol estava no meio do céu.

Tiraram de suas mochilas sanduíches, encheram as garrafinhas de água fresca, foram ao banheiro. Esticaram-se na grama, gargalharam e voltaram ao trabalho:

*Não podemos deixar que o dia termine sem termos esse documento. Nosso tempo cem por cento juntos está terminando, temos somente mais alguns dias, não podemos nos separar sem ele.

E foi assim, depois de muito trabalho, riscos e rabiscos, bem na hora em que os passarinhos cantam para se despedir do sol, eles assinaram duas vias do documento oficial que ficou assim:

“Em nome da nossa amizade, que na presente data completa 15 anos, nos comprometemos a sermos amigos fiéis por toda a vida.”

“Temos muitos planos, mas não sabemos, não temos ideia de onde iremos parar, do que será de nós, mas prometemos solenemente sermos sempre fiéis um ao outro.”

“Hoje somos mais quebrados que arroz de terceira, mas, ao longo dos últimos 15 anos, sempre dividimos material escolar, comida, roupas… Aliás, sempre dividimos tudo que tivemos. Mesmo assim, sempre fez parte da nossa ética nunca explorar o outro nem ser abusado e, assim, continuaremos a ser: dando ao outro parte do que temos, mas sem nunca ser folgado.”

“Não é porque temos esse documento assinado que um vai folgar nas costas do outro se um ficar rico e o outro continuar pobre.”

“Batalharemos com afinco para darmos orgulho aos nossos familiares e um ao outro.”

“Caso um de nós precise de um órgão, medula ou qualquer outra coisa necessária para salvar sua vida, o outro será o primeiro a oferecer o seu.”

“Nunca, jamais um de nós passará necessidade em silêncio. Faz parte do acordo contar suas necessidades ao outro. Ninguém sabe o que calado quer.”

“O contato diminuirá com o tempo, a gente sabe e tem certeza disso, mas ao menos uma vez ao mês, nesse dia, mandaremos essa mensagem: “Céu azul, navegando a todo vapor” se tudo estiver bem ou então “À deriva” se algo estiver mal”.

“Ao notar necessidade, o outro entrará em contato imediatamente.”

“Nossos canais de comunicação sempre estarão abertos e acessíveis. É dever de cada um manter os endereços, telefones e notícias atualizados.”

“Tornamo-nos, a partir de agora, oficialmente responsáveis um pelo outro, pela integridade física, financeira, emocional e espiritual de nós mesmos e do outro.”

“Declaro ser verdadeiro tudo o que aqui se encontra e comprometo-me a cumprir cada um dos itens em qualquer tempo e lugar em que forem reivindicados.”

Eles leram e releram o documento.

Passaram a limpo umas quatro vezes e, por fim, depois de cada um escrever uma via, ambos assinaram as duas.

Abraçaram-se, apertaram as mãos, juraram amizade eterna e foram juntos para a parada de ônibus.

Dias depois foi, a formatura.

Festa, comemoração, despedida da galera, novos rumos…

Foram para faculdade.

Nos momentos de folga, se encontravam.

Saiam, trocavam figurinhas sobre tudo, como quando iam e vinham juntos o tempo todo.

Mas o tempo passa e a vida toma rumos diferentes.

Com ele correndo sempre se viram por dois meses seguidos enviando e recebendo apenas:

“Céu azul, navegando a todo vapor.”

Até que, em um mês, no dia marcado, um enviou a mensagem de que estava tudo bem e não recebeu a resposta imediatamente.

Ficou preocupado.

O outro sempre fora mais distraído.

Esperou até o fim do dia e resolveu telefonar:

*Oi, cara! Está tudo bem sim, só não vi mesmo sua mensagem. Prometo que isso não vai mais acontecer. Estou bem.

E assim aconteceu.

Nova formatura.

Outros rumos.

Mais longe, mais conquistas, maior distância.

Amores iam e vinham.

Telefonemas e mensagens também.

Amores vieram para ficar.

Um foi padrinho do casamento do outro.

As mulheres se gostaram logo de cara e, de quando em vez, iam visitar-se, viajavam juntos.

O tempo, a vida e os negócios de ambos seguiam a todo o vapor.

Mensagens iam e vinham contando maravilhas.

Até que um dia…

No meio da madrugada o telefone de um deles tocou.

Do outro lado o amigo desesperado pedia ajuda.

O outro, sem perguntar detalhes, sem querer saber o real motivo da ligação, levantou correndo, vestiu qualquer coisa e foi.

Chegou lá, tomou todas as providências e só saiu de perto quando tudo estava bem.

Depois disso, telefonemas desesperados foram feitos e atendidos tanto por um como pelo outro.

Telefonemas leves e alegres também se repetiram inúmeras vezes.

Muitos e muitos anos se passaram desde o dia em que assinaram aquele documento.

Nenhum deles nunca contou para ninguém o compromisso que tinham um com o outro, nenhum deles nunca cobrou do outro as coisas que ali prometera.

Até que um dia:

*Você ainda se lembra?

*Claro que me lembro.

*Lembra-se do que está escrito?

*Lembro sim e, se um dia fizer menção de esquecer, ele está aqui para não deixar que isso aconteça. – falou e tirou o papel amarelado e todo amassado de dentro da carteira.

O outro tomou o documento da mão do amigo e em meio a uma crise de riso por reconhecer sua letra do passado leu as promessas que fizera há tanto tempo.

Ficou sério e abrindo a própria carteira tirou sua via do documento:

*Uma vez ao mês, eu ainda o leio para ver se continuo cumprindo minhas promessas.

O amigo sorriu e o tranquilizou:

*Não se preocupe, você tem sido mais fiel que meu cachorro.

Eles riram e continuaram pela vida afora, sendo felizes, cuidando da própria vida, ajudando o amigo a cuidar da sua e tendo a certeza de ter o resgate garantido caso se encontrassem “à deriva.”

Vivi Antunes é ajuntadora de letrinhas e assim o faz às segundas, quartas e sextas no www.viviantunes.com.br

 

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